quarta-feira, 20 de junho de 2007

As agudezas do humor

Kibeloco. Junho/2007.

Não vou falar das agulhadas do humor, o que também é uma agudeza e, em geral, forjada ao pé da agudeza que vou tratar neste texto (esta charge contém também esta agudeza).

Baltazar Gracián, teórico contemporâneo do Barroco, chamou de "agudeza" a astúcia retórica e artística de dar um salto além em um texto ou uma obra que já tenha ido bastante longe. Assim, um soneto barroco poderia sempre em seu desfecho buscar uma idéia inesperada, uma combinação inusitada, que apresentasse uma inflexão do sentido que vinha sendo construído. Bons retóricos e bons artistas eram os "agudos". Não é a mesma coisa que a idéia romântica de "talento". Em geral, o bom artista para o Barroco seria aquele que traduzisse, para o mundo extenso, por isso indireta e mediadamente, através do engenho artístico, uma parcela do desvendável da Criação divina. Essa seria a verdade possível; e a metáfora seria a melhor das armas.

Pois, essa charge nos traz um pouco das agudezas do humor. Muitas vezes, o humor usa de uma inflexão ou de um aprofundamento para se fazer mais humor. Detalhes dentro de piadas, partes non-senses dentro do "bom" senso.

Nesta charge (uma foto-montagem, pois vê-se Maradona muito "alterado": veja nariz e olhos), o humor básico seria aquele que joga com o Maradona viciado em cocaína. Agora, jogar com isso e ao mesmo tempo, combinando, debochar do outro personagem (debochar de suas "caspas") é a agudeza do humor aqui. Não devem ser caspas de fato; ou é uma característica da própria blusa daquele coadjuvante (desconhecido para nós, desimportante; imaginamos que seja alguém da TV argentina), ou é também um efeito acrescido na montagem da foto.

A blusa preta permite não só inclui-las, mas ter a idéia de fazer humor com a inclusão daquelas caspas. Um sobre-humor, na verdade. Um humor agudo, mas sem o qual não acharíamos graça do intuito do personagem Maradona. Não se tratam de duas piadas; trata-se de uma só, elaborada, pela agudeza do chargista, a partir da combinação de dois elementos: a obsessão de Maradona e as caspas sobre a blusa preta. Ou melhor, a obsessão sóbria ou alterada de Maradona o faz ver cocaína onde só haveriam caspas, e muitas caspas. A agudeza é que, tão "estranha" quanto a obsessão de Maradona é alguém ter aquela quantidade de caspas sobre a blusa.

Lembro-me de uma cena de "Blow Up", de Michelangelo Antonioni: duas pessoas estão jogando uma partida imaginária de tênis até que a bola, imaginária, cai para fora da quadra; um homem, que observava com reservas aquela cena, então, aceita o pedido dos desconhecidos jogadores e "pega" a bolinha, devolvendo-lhes: se o mundo está louco, participemos dele. No caso de nossa charge, se o homem tem tudo aquilo de caspas e acha normal tê-las assim, a hipótese de Maradona não é tão mais louca (embora seja mais imoral).

Talvez a idéia do chargista na peça aqui tratada tenha se dado a partir de uma foto vista por ele casualmente em um site ou jornal; ou talvez sequer o encontro Maradona-coadjuvante tenha existido e o chargista, pensando na aparência entre cocaína e caspas, tenha imaginado (e executado) a partir daí toda a cena, de Maradona encontrando-se com um personagem de terno preto. A segunda hipótese parece improvável, ou seja, que o encontro em si seja uma foto-montagem. O título no topo da charge parece apontar para algo bastante específico e desnecessário - pressupomos - (a saber, "TV argentina") para não ter de fato ocorrido. A menos que o mundo esteja louco mesmo...

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