Criei coragem para postar esta música, que está entre minhas preferidas. O poema é do poeta e advogado Getúlio Cardozo, de Mococa (SP). Embora não queira representar a realidade, este poema reflete um pouco do dia a dia do Getúlio, que, entre um caso jurídico e outro, cai na literatura. Ou, como diz o poema, por sobre o "mar de Ulisses", ou por sobre o covil de seus poemas, jazem seus processos e sua vida pública.
A canção foi feita por André Melo, um cantor e compositor da cidade de Assis (SP). O André musicou alguns poemas do Getúlio e do Ricardo Flaitt, outro poeta mocoquense. Quando ouvi a canção do André, fiquei impressionado com a beleza da música e do violão, que se encaixaram muito bem na letra-poema do Getúlio.
Tentei, então, reproduzir um pouco do violão e gravar com minha própria voz. Infelizmente, não sei onde fui colocar a gravação (informal, num barzinho) que o André tinha feito. Enquanto isso, vai um trecho com minha voz desafinada (essa gravação tem mais de 4 anos; hoje em dia minha voz é pior).
DIÁRIO DE MEUS DELÍRIOSGetúlio Cardozo e André Melo
São meus os cirros deste céu
São meus os cirros deste céu
Um pintor de paredes em meus ombros
pintou esses cirros em meu vergel
Minha também a glória desta pedra
e da eternidade, dela faço o que quero:
jardins decaídos ou primaveras
Tenho sobre o mar de Ulisses
ordenações, alvarás e veto
e o poema é meu covil secreto
Tenho na gaveta de minha escrivaninha
um édito lavrado a duras penas
com proibições sobre nardos e gardênias
Apodreceram em codicilos de velhas
(rotas de orvalho, murchas)
orquídeas, rosas, bromélias
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domingo, 19 de dezembro de 2010
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
Money for nothing - Dire Straits
MONEY FOR NOTHING (Mark Knopfler)
Now look at them yo-yo's that's the way you do it
You play the guitar on the MTV
That ain't workin' that's the way you do it
Money for nothin' and chicks for free
Now that ain't workin' that's the way you do it
Lemme tell ya them guys ain't dumb
Maybe get a blister on your little finger
Maybe get a blister on your thumb
We gotta install microwave ovens
Custom kitchen deliveries
We gotta move these refrigerators
We gotta move these colour TV's
See the little faggot with the earring and the makeup
Yeah buddy that's his own hair
That little faggot got his own jet airplane
That little faggot he's a millionaire
We gotta install microwave ovens
Custom kitchen deliveries
We gotta move these refrigerators
We gotta move these colour TV's
I shoulda learned to play the guitar
I shoulda learned to play them drums
Look at that mama, she got it stickin' in the camera
Man we could have some fun
And he's up there, what's that? Hawaiian noises?
Bangin' on the bongoes like a chimpanzee
That ain't workin' that's the way you do it
Get your money for nothin' get your chicks for free
We gotta install microwave ovens
Custom kitchen deliveries
We gotta move these refrigerators
We gotta move these colour TV's, Lord
Esse cara tem Money for Nothing e as garotas à vontade!!
Now that ain't workin' that's the way you do it
You play the guitar on the MTV
That ain't workin' that's the way you do it
Money for nothin' and your chicks for free
Money for nothin' and chicks for free
Três ressalvas, antes de começar meu (espero, breve) comentário sobre a canção:
1) A gravação não é do Dire Straits. Seu krunner até está no palco (o grande Mark Knopfler), junto com Eric Clapton, Sting e Phill Collins.
2) O melhor vídeo-clip não é o acima apresentado, mas o que vai ao final deste post. Escolhi o primeiro clip por causa que está legendado.
3) Está legendado, mas a tradução é fraca. No título, preferiria traduzir por "Dinheiro fácil", que seria uma tradução mais "direta ao ponto".
Vamos ao comentário, que se bastará a um (complexo) ponto. No clipe original (abaixo), vemos com mais clareza a figura dos "carregadores de móveis e eletrodomésticos", que aqui bem que poderiam ser "carregadores de piano". O ponto de vista da canção é o ponto de vista desses carregadores. Mas, por quê? Já que comecei o post levantando três ressalvas, vou manter o número cabalístico e elencar três motivos para a escolha desses "narradores", buscando demonstrar como ela ajuda na construção de sentidos da canção.
1) Por serem os carregadores que "falam", os músicos do Dire Straits não passam por pedantes.
2) Se os carregadores de móveis e eletrodomésticos chegaram à conclusão de que os boyzinhos da MTV não entendem de música, qualquer outra pessoa poderia chegar à mesma conclusão.
3) Por fim, os carregadores de móveis são uma metáfora dos Dire Straits e outros "músicos sérios", que "se esforçam" para criar letras e músicas de qualidade.
Não desenvolvi os três pontos acima, mas acho que consegui mostrar uma chave de leitura para essa canção, que considera que gosto se discute sim!
Aliás, quando se diz que quatro coisas não devem ser discutidas, é exatamente porque se sabe que são as quatro coisas mais polêmicas, ou seja, as únicas coisas que de fato merecem uma boa discussão: gosto, política, religião e sexo!
Aqui vai a melhor versão para a canção:
http://www.youtube.com/watch?v=VOD805iAqjY
Achei esse comentário na hilária Deciclopédia sobre como a canção teria sido composta (não o leve a sério).
Composta pelo Mark Knopfler, Money for Nothing tem uma história um tanto anormal. Mark e John estavam no apartamento coçando o saco e cansados de não fazerem nada o dia todo, decidiram sair para caçar algumas guitarras.
Passaram pelo Shopping, entraram nas Casas Bahia e foram à parte de instrumentos. Ouviram ali perto um cara reclamar da vida, do trabalho, da mãe, do chefe e do mundo. Reclamava que era um burro de carga e que deveria ter aprendido a tocar instrumentos musicais.
Com isso, Mark sentou num sofá e começou a escrever a saiu essa música.
domingo, 31 de maio de 2009
Quem é cover de quem? (Itamar Assumpção)

Nessa canção, o saudoso Itamar Assumpção relata seu drama pessoal (rs) de ser confundido com Luiz Melodia.
Nasceste no Rio, Estácio
eu em São Paulo, Tietê
Os nossos passos com passos
afirmam ter tudo a ver
Não só na tonalidade
e também no jeitão de ser
Circula pela cidade
que sou cover de você
Tu és o Pérola Negra
já desde setenta e dois
Eu inventei Beleleú
só oito anos depois
Além desta pela preta
coisa comum em nós dois
Idéias músicas letras
não são só feijão com arroz
Dizem formarmos de fato
um belo par de malditos
Te chamam de Negro Gato
me tratam de Nego Dito
E já que talento é inato
isso tudo estava escrito
Num mundo cheio de chatos
até que somos São Beneditos
No mais sambamos de tudo
Funk soul blues jazz rock and roll
Trocamos tudo em miúdos
gravamos num disc show
Paixão amor sobretudo
aquele que começou
Mais grave ou mais agudo
slow speed or speed slow
Só falta agora contar
o que que houve outro dia
Assim que entrei num bar
desses da periferia
Alguém começou gritar
jurou que me conhecia
Mas no lugar de Itamar
disparou "Luiz Melodia"!
E é por essas e outras
que vamos contemporâneos
Compositor tão ilustre
Que bom ser teu conterrâneo
Tu abres eu fecho a boca
já tem mais de vinte anos
Então baby não se assuste
Pérola Negra, eu te amo
(Itamar Assumpção, "Bicho de Sete Cabeças, Vol. 1", 1993)
segunda-feira, 11 de maio de 2009
No dia em que eu vim-me embora (Caetano Veloso)
No dia em que eu vim-me embora
minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
e eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
não teve nada de mais
Mala de couro forrada
com pano forte brim cáqui
Minha vó já quase morta,
minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
e até o porto meu pai
O qual não disse palavra
durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho,
vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala
de couro que eu carregava
Embora estando forrada
fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo,
atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo
sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital...
Algumas questões escolares sobre a canção:
1. A ida do eu-lírico sugere uma viagem temporária ou permanente? Retire um trecho da canção que sustente a sua resposta.
2. De onde você acha que o eu-lírico está saindo e para onde ele vai? Fale um pouco sobre onde você acha que ficam esses lugares, o que existe nesses lugares.
3. Você acha que o eu-lírico faz essa viagem por livre e espontânea vontade? Que motivos você acha que fazem com que ele viaje? Comente.
4. O dia dessa partida marcou a vida do eu-lírico, ou foi um dia como outro qualquer? Retire um trecho da canção que sustente a sua resposta.
5. Que idade você daria, aproximadamente, para o eu-lírico? Justifique sua resposta.
6. O terceiro verso da terceira estrofe traz a afirmação "Minha vó já quase morta", mas não diz por que motivo a avó estaria "quase morta". Levante duas possíveis causas para a avó estar nessa condição.
7. A expressão "o qual", no início da 5° estrofe, se refere a quem?
8. Você acha que a falta de diálogo e de palavras entre os personagens se deve a quê?
9. Qual é a reação do eu-lírico antes e durante a viagem? Comente.
10. No 7° parágrafo, o eu-lírico dá uma atenção especial ao cheiro forte de sua mala. O que essa atitude nos diz sobre o eu-lírico e a situação por que está passando?
11. A avó, a mãe, a irmã e o pai acompanham o eu-lírico até diferentes lugares. Que lugares são esses e como isso reflete a forma de encarar a viagem daquele parente?
12. Observe o trecho:
Minha vó já quase morta,
minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
e até o porto meu pai
O qual não disse palavra
durante todo o caminho
Em todos as orações apresentadas no trecho, temos o sujeito no início da oração. Isso não acontece somente uma vez. Encontre o trecho em que há a inversão e explique qual mudança de sentido ocorreria se não ocorresse tal inversão.
13. O ritmo, os instrumentos e a interpretação do cantor guardam alguma relação com o conteúdo da canção? Explique.
Comentários:
Na questão 1, os elementos para resposta são muito mais discursivos (a reação e a importância que damos a uma mudança permanente) que lingüístico (pois "ir-me embora" é expressão usada tanto para viagens passageiras quanto para mudanças permanentes).
Na questão 2, espera-se que o aluno lance hipóteses sobre os lugares de origem (cidade pequena, meio rural, Norte, Nordeste, interior) e de destino (cidade grande). Convém chamar a atenção que, para a poesia, "capital" não quer dizer necessariamente "capital federal" ou "capital do estado", mas, por metonímia, uma cidade grande.
Na questão 3, podemos supor que o eu-lírico não sabe direito o que o espera, mas sabe, mais ou menos, por que está se mudando: para buscar trabalho e melhores condições de vida, e, com isso, tentar de certa amenizar a condição sofrida sua e/ou de sua família. Talvez a indiferença desse jovem se dê por desconfiar (ou ter elementos formados para isso) de que as condições de vida de um jovem trabalhador, em especial nas suas condições, serão também desfavoráveis na grande cidade.
Observe que todos esses fatos não significam necessariamente que o dia da partida tenha sido insignificante (questão 4). O aluno pode levantar essas hipóteses, a partir de fragmentos isolados da canção ("No dia que eu vim-me embora / não teve nada de mais"). Mas, no conjunto, o dia marcou muito o eu-lírico, tanto é que se dispõs a nos contá-lo; além disso, lembrou-se de detalhes corporais (o fedor da mala, o lugar em que estavam os parentes, a cor das coisas) muito precisos.
O personagem que migra o faz de forma um tanto quanto maquinal: sem saber direito por que o faz. O dia não é encantado, mas pesa na memória.
Convém debater também hipóteses (isso não está explícito e não tem uma resposta única) sobre se a família, ou parte dela, influenciara ou obrigara a mudança do jovem.
Na questão 5, temos a suposição de que o eu-lírico seja um jovem (15, 20, 25 anos). São indícios fortes para isso o fato de ter avó, pai, mãe (e irmã morando em casa). Além disso, sugere-se que esteja em início da idade laboral. Convém chamar a atenção para o fato de que existe trabalho infantil e que, principalmente nas regiões mais precárias, o trabalho começa muito cedo (e isso era ainda mais grave na época da confecção dessa canção).
Questão 6: a reação feminina (irmã e mãe) é bem diferente da reação masculina (pai; mais frio). Isso está marcado inclusive na bela gradação que a música contrói: a avó (morta sabe-se lá se de tristeza ou de doença), a mãe até a porta, a irmã até a rua e o pai, mais forte, até o porto.
A fraqueza da avó, portanto, pode ser por doença (o que reforça o cenário de precariedade que impulsiona a mudança do jovem) ou por tristeza demasiada (uma vez que as mais tristes e temerosas são elencadas primeiro, até chegar ao pai indiferente: avó, mãe, irmã, pai).
A questão 7 é mais de coesão e coerência textual. A expressão "o qual" é uma anáfora (substitui um termo antes dito) que se refere ao "pai". Para perceber isso, o aluno deveria perceber que o pai foi o último elemento citado na estrofe anterior.
A questão 8 ficou propositalmente aberta demais, para dar chance de os alunos
pensarem. Se for o caso, podem ser lançadas algumas pistas:
a) como o momento era de forte emoção, faltaram palavras aos personagens;
b) a vida do lugar onde eles vivem acaba marcando o jeito de ser dos personagens;
c) como o personagem está sendo arrastado pelo "destino", sem saber direito o que espera por ele, a situação provoca uma reação ao mesmo tempo de susto e de indiferença.
A questão 9 se relaciona com a questão 10. A 10 tenta chamar a atenção para o fato de que os aspectos corporais falam muito mais alto que o aspecto meramente espiritual. Como não há alegria, nem tristeza, só silêncio e espanto, o que o eu-lírico "sentia" (7a. estrofe) era o fedor da mala.
Questão 11: Ao silêncio do pai e dos personagens, os aspectos físicos (a mala que cheira mal) vão ganhando destaque; é também um lado simbólico, são símbolos de que aquela migração era pura necessidade, são símbolos de tempos duros, sobretudo no sertão.
A questão 12 envolve gramática e sentido. O verso "e até o porto meu pai" é o único em que o sujeito aparece depois do predicado. Trata-se de oração porque o verbo está oculto ("e até o porto [foi] meu pai").
A inversão se dá porque, na seqüência, a letra continua falando do pai ("o qual não disse palavra"). Caso "pai" viesse antes de "porto" (sujeito no início da oração), "o qual" (pronome masculino singular) não se remeteria mais a "pai" e sim a "porto", que seria o último substantivo masculino no singular.
Além dessa explicação, existem outras: a) questões estilísticas, b) quebrar a monotonia do texto, c) recurso usado no gênero "poema" para dar mais força à expressão...
Questão 13: uma resposta possível é a que aponte para a lentidão do ritmo no início da canção, além de o instrumental (um teclado em string ou estilo "órgão", os acordes secos da guitarra...) e de a impostação de voz do cantor sugerirem um tom de "lamento", coerente com o conteúdo da canção. Momento para se discutir algo próprio do gênero "canção popular": a junção letra-música.
Mas, cuidado... São possibilidades de interpretação. Não quer dizer que as escolhas foram "conscientes", o que não desmente o fato de que elas tenham sido "bem feitas". Em última instância, letra e música guardam certa independência, têm suas lógicas próprias: evitemos, portanto, interpretações forçadas demais.
sábado, 9 de maio de 2009
Iracema Voou (Chico Buarque)
Iracema voou
Para a América
Leva roupa e lã
E anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar:
- É Iracema da América!
(Chico Buarque. Álbum "As cidades", BMG 1998)
O nome "Iracema" foi um nome inventado por José de Alencar para nomear a personagem índia do romance homônimo (não é um nome autóctone indígena). Para o movimento indigenista, não poderia haver um nome mais representativo dessa terra: "Iracema", além de guardar a dicção do tupi, é "América" ao contrário.
Essa América tupiniquim, na canção de Chico, "invade" a América desenvolvida. A canção trata do tema da migração em busca de trabalho. É um mote para trabalhos escolares envolvendo fluxos migratórios, suas razões e suas expressões nesse tempo de globalização... "Não dá mole pra polícia" e "anda lépida" (sempre em fuga) são trechos que refletem as restrições à entrada de migrantes nos EUA e a condição ilegal de Iracema. Seria a globalização de fato democrática, potencializadora?
Mas convém que também nos atentemos para a canção em si, para a letra, o enredo, sua composição. "Lava chão numa casa de chá": destaca-se a sonoridade "chão" e "chá".
"Lava chão" é um hipônimo para "é faxineira". O narrador guarda empatia para com a personagem, o que nos leva a dizer que "lava chão" não a ofende, mas sim mostra que o narrador é afim à personagem, tão "direto" quanto ela.
Apesar do pragmatismo exploratório de "lavar chão", e apesar de estar desambientada com o clima ("leva roupa e lã"), Iracema parece estar gostando do lugar e tem também pretensões simbólicas no terreno estrangeiro: "ambiciona estudar canto lírico".
A palavra "lépida", proparoxítona, é uma "palavra em fuga", palavra veloz, condizente com a situação clandestina de Iracema. Na poesia, mais do que em qualquer outro lugar, a forma e o ritmo também significam.
É coerente à composição textual que Iracema namore um mímico: ela não domina o idioma inglês e teria encontrado alguém que com ela interaja bem.
O discurso saudosista é questionado; sobre ele há certo deboche: "Tem saudade do Ceará / mas não muita". Nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, mas pra Iracema é melhor estar nos States. O "chão" lavado lá é, na verdade, o mesmo "chão" lavado aqui, mas lá se remunera melhor, em termos absolutos.
Aliás, perceba-se a gradação ao final da canção: sai de um dizer aparentemente saudosista ("Tem saudades do Ceará") para relativizá-lo ("mas não muita") e, por fim, desmenti-lo, no orgulho que Iracema tem necessidade de transmitir a alguém, e o faz por telefone ("É Iracema da América!").
Algumas perguntas escolares:
1. De que lugar Iracema se origina?
R: O aluno pode deixar-se levar pelo último verso: "Iracema da América". Nesse caso, a preposição+artigo "da" não se refere à "origem de nascimento" e sim a uma "origem de onde se fala" (local de onde fala). Para responder à questão, o aluno deveria supor que, se Iracema tem "saudade do Ceará", é porque deve ter vindo de lá.
2. De acordo com a canção, a que se refere o termo "América"?
Na resposta 1, seria incorreto pensar que, se Iracema veio do Ceará, ela se origina da América, pois o Ceará integra a América. Na canção, "América" é uma metonímia para "Estados Unidos da América", o que, inclusive, pode até ser associado a uma tão falada prepotência imperialista estadunidense.
Ótima oportunidade para pensarmos que os sentidos não são estáticos. Podem ser refeitos pelo texto. Em outro contexto, "América" pode significar "continente americano", mas esse não foi o uso na canção.
3. A que lugar faz referência o termo "lá" (4a estrofe)?
R.: América.
4. Qual o trabalho exercido por Iracema? Como você identifica esse tipo de trabalho e o processo de migração de pessoas?
R: Trabalho de "Lavar chão"; faxineira. É visto como um trabalho não qualificado. Em geral, os migrantes de países periféricos exercem esse tipo de trabalho nos países centrais.
5. Com qual pessoa Iracema mantém maior relação afetiva? Relacione o ofício dessa pessoa com uma informação que é dada na segunda estrofe.
R: Com um mímico. Na segunda estrofe, é dito que ela "Não domina o idioma inglês". A mímica é um tipo de linguagem que facilitaria a interação de Iracema com essa outra pessoa; talvez disso decorra a empatia de Iracema para com o rapaz.
6. Como o termo "lépida" se relaciona com o verso "Não dá mole pra polícia"? Explique também o sentido deste verso.
R: "Lépida" quer dizer "ligeira". Ver, mais abaixo, nosso comentário sobre a sonoridade também escorregadia dessa proparoxítona. A situação de Iracema é, provavelmente, de trabalhadora clandestina (o professor deve comentar a migração à procura de trabalho e como razões econômicas justificam o comportamento xenófobo).
7. Observe o trecho do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias (1847):
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar –sozinho, à noite–
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
A penútima estrofe da canção guarda forte relação de intertextualidade com o trecho do poema acima. Diga se a posição de Iracema questiona ou reafirma a posição do eu-lírico do poema de Gonçalves Dias. Comente.
R: Os dois textos se contrapõem. O nacionalismo do poema se contrapõe com certo pragmatismo de Iracema. No fundo, há também as visões dos dois poetas: a visão nacionalista de Gonçalves Dias e a visão "modernista" e crítica de Chico Buarque, mais preocupado em trazer questões relacionadas ao mundo do trabalho. Para importante camada da intelectualidade brasileira contemporânea, uma visão nacionalista seria ingênua depois da experiência nacionalista da ditadura e depois das críticas sociológicas de que, na verdade, temos muitos "brasis".
8. Sem recorrer ao dicionário, que sentido você daria, pelo contexto, à palavra "afoita"?
R.: Iracema tem urgência em falar, e com orgulhosa, que está nos EUA. Há, subentendido, o discurso de que tudo o que é dos EUA é importante; discurso ao qual Iracema se filia. Ótima oportunidade para separarmos personagem e autor: provavelmente não é essa a posição de Chico Buarque, que está muito mais preocupado em relatar uma situação e um comportamento que julgá-lo. Buarque "deixa" Iracema falar.
9. De quem é a voz que nos fala no último verso do poema? É a mesma voz que fala nos outros versos? Explique.
R: É Iracema quem fala. O "narrador" nos anuncia que Iracema faz uma ligação. "É alguém de algum lugar" ("É Iracema da América") é um tipo de construção cristalizada, que nos traz a memória de uma conversa telefônica.
Além disso, há os marcadores ":" e "-", que indicam a transição para o discurso direto.
10. Onde Iracema está ao fazer a ligação e onde está o destinatário do seu telefonema?
R.: Iracema está na América (EUA). Chamar atenção para o "da" (origem) em "É Iracema da América". A preposição "de" é, nesse caso, uma palavra de conteúdo (isto é, uma palavra com sentido, pois dá idéia de lugar) e não uma mera palavra de função (como ocorre em outras ocorrências de "de").
11. Há quanto tempo você acha que Iracema está no lugar de onde ela faz a ligação telefônica? Transcreva um ou mais versos da canção que fundamentem sua resposta.
R.: Provavelmente há pouco tempo. "Não domina o idioma inglês".
12. O fato de Iracema ligar a cobrar nos diz o que sobre ela?
R.: Discutir a condição econômica de Iracema e dos migrantes em geral.
13. Diga uma figura de linguagem presente no verso "Lava chão numa casa de chá". Indique um outro verso em que o mesmo fenômeno ocorra.
R.: Aliteração (chão, chá), isto é, sons parecido dentro de uma mesma frase. Outros casos: Não domina o idioma inglês (aliteração de ã, n, m, d).
14. Quanto tempo você acha que Iracema pretende ficar no lugar em que está? Transcreva um verso ou um trecho que justifique sua resposta.
R.: Para sempre, ou pelo menos um tempo grande (relatar o fato de que muitos migrantes vão para países centrais para poupar e depois regressar ao país de origem). "Se puder, vai ficando por lá / Tem saudade do Ceará / Mas não muita". Pode-se relatar, também, sua ambição em estudar canto lírico e seu orgulho de estar onde está ("me liga afoita").
15. O texto deixa implícito que um fator pode impedir que Iracema fique muito tempo no lugar em que ela está no momento da canção. Que fator é esse?
R.: Iracema pode ser deportada, por sua situação de estrangeira clandestina. Essa ameaça é representada, na canção, pela polícia.
16. O nome de Iracema forma um anagrama com outra palavra da canção. Que palavra é essa?
R.: IRACEMA - AMÉRICA. Anagrama é uma permutação (troca envolvendo todos os elementos) de letras.
17. Associe cada preposição das frases abaixo com um sentido:
1. Voou para a América.
2. Roupa de lã.
3. Com um mímico.
4. Iracema da América.
( ) local de onde se fala
( ) companhia
( ) movimento
( ) material de que é feito
R.: 4, 3, 1, 2.
P.S.: Bonito esse verso: "Lava chão numa casa de chá". Não é mero joguinho de palavras chão / chá. Há muita significação. "Chão" é palavra mais dura, pesada, é o ponto de vista da faxineira; já o "chá" é palavra leve, alegre, é o ponto de vista dos clientes do lugar.
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
Favela (Padeirinho & Pessanha)
Ouvir
Gravação: Nara Leão
Numa vasta extensão
Onde não há plantação
Nem ninguém morando lá
Cada um pobre que passa por ali
Só pensa em construir seu lar
E quando o primeiro começa
Os outros depressa procuram marcar
Seu pedacinho de terra pra morar
E assim a região
sofre modificação
Fica sendo chamada de a nova aquarela
E é aí que o lugar
Então passa a se chamar favela
Gravação: Nara Leão
Numa vasta extensão
Onde não há plantação
Nem ninguém morando lá
Cada um pobre que passa por ali
Só pensa em construir seu lar
E quando o primeiro começa
Os outros depressa procuram marcar
Seu pedacinho de terra pra morar
E assim a região
sofre modificação
Fica sendo chamada de a nova aquarela
E é aí que o lugar
Então passa a se chamar favela
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
sábado, 7 de fevereiro de 2009
Felicidade (Luis Tatit)
Discover Luiz Tatit!
Não sei porque eu tô tão feliz
Não há motivo algum pra ter tanta felicidade
Não sei o que que foi que eu fiz
Se eu fui perdendo o senso de realidade
Um sentimento indefinido
Foi me tomando ao cair da tarde
Infelizmente era felicidade
Claro que é muito gostoso
Claro que eu não acredito
Felicidade assim sem mais nem menos é muito esquisito
Não sei porque eu tô tão feliz
Preciso refletir um pouco e sair do barato
Não posso continuar assim feliz
Como se fosse um sentimento inato
Sem ter o menor motivo
Sem uma razão de fato
Ser feliz assim é meio chato
E as coisas nem vão muito bem
Perdi o dinheiro que eu tinha guardado
E pra completar depois disso
Eu fui despedido e estou desempregado
Amor que sempre foi meu forte
Não tenho tido muita sorte
Estou sozinho, sem saída, sem dinheiro e sem comida
E feliz da vida!!!
Não sei porque eu tô tão feliz
Vai ver que é pra esconder no fundo uma infelicidade
Pensei que fosse por aí, fiz todas terapias que tem na cidade
A conclusão veio depressa e sem nenhuma novidade
O meu problema era felicidade
Não fiquei desesperado, não, fui até bem razoável
Felicidade quando é no começo ainda é controlável
Não sei o que foi que eu fiz
Pra merecer estar radiante de felicidade
Mais fácil ver o que não fiz
Fiz muito pouca aqui pra minha idade
Não me dediquei a nada
Tudo eu fiz pela metade, porque então tanta felicidade
E dizem que eu só penso em mim, que sou muito centrado
Que eu sou egoísta
Tem gente que põe meus defeitos em ordem alfabética
E faz uma lista
Por isso não se justifica tanto privilégio de felicidade
Independente dos deslizes dentre todos os felizes
Sou o mais feliz
Não sei porque eu tô tão feliz
E já nem sei se é necessário ter um bom motivo
A busca de uma razão me deu dor de cabeça, acabou comigo
Enfim, eu já tentei de tudo, enfim eu quis ser conseqüente
Mas desisti, vou ser feliz pra sempre
Peço a todos com licença, vamos liberar o pedaço
Felicidade assim desse tamanho
Só com muito espaço!
sexta-feira, 13 de julho de 2007
Trem do Pantanal (Almir Sater)
Enquanto esse velho trem
Atravessa o Pantanal
As estrelas do Cruzeiro
Fazem um sinal
De que esse é o melhor caminho
Pra quem é como eu
Mais um fugitivo da guerra
Enquanto esse velho trem
Atravessa o Pantanal
O povo lá em casa espera
Que eu mande um postal
Dizendo que eu estou muito bem
E vivo
Rumo a Santa Cruz de la Sierra
Enquanto esse velho trem
Atravessa o Pantanal
Só meu coração está
Batendo desigual
Ele agora sabe que o medo
Viaja também
Sobre todos os trilhos da Terra
Rumo a Santa Cruz de la Sierra
Sobre todos os trilhos da Terra
Na postagem sobre a canção "Odeio rodeio", tentei mostrar como o Chico César brinca com o esteriótipo do "sertanojo", esse gênero musical do "sertão" em tempos de cultura de massas. Naquela canção, Chico César não só retoma e desloca idéias do "sertanojo", marcando uma posição contra elas, como também "incorpora" (ou, finge incorporar) um jeito emocionado de ser do enunciador "sertanojo".
Sei que pejorar não é algo muito bom em ciência, mas, quem disse que esse blog quer fazer ciência? Talvez queira, mas não se obriga a amarrar nada. São idéias soltas que podem ganhar substância em outro lugar, em um artigo, meu ou de outrem. Mas, usei "sertanojo" porque eu falava de certa forma junto com uma posição para quem Zezé di Camargo e afins devem ser excluídos do conjunto dos sertanejos. Ou seja, pode existir música sertaneja boa.
Esta do Almir Sater está na categoria sertanejo mesmo. Não que não haja pontos em comum entre o sertanejo e o sertanojo (posso tirar as aspas já, agora que estamos mais íntimos); há uma zona interdiscursiva entre os dois. E não é corriqueiro que os dois se choquem frontalmente. A migração discursiva do segundo não é opositiva mas apropriativa do primeiro; e o primeiro muitas vezes "deixa pra lá" o segundo, ou se enfraqueceu de tal modo, dadas as condições históricas, que já não pode mais falar direito. O leitor pode tentar comparar por si mesmo esses discursos, a partir desta minha rápida análise.
De acordo com Maingueneau (Análise de textos de comunicação), um discurso não é feito só de idéias. Com isso, Maingueneau abre espaço para pensarmos também o discurso para além do texto. Ou, pelo menos, para pensar como idéias textuais (verbais) se associam a outros elementos na constituição de uma semântica global do discurso. Uma semântica global seria regida por princípios simples e pouco numerosos, que, por sua vez, permitiriam a infinidade dos textos possíveis e de outros elementos anexos (e talvez não menos relevantes que aqueles). E um desses "outros elementos" discursivos para além do texto seria o ethos.
Para ficar mais claro, vamos aplicar isso a uma análise desta canção.
As idéias (textualmente expressas) remetem a um discurso (como todo discurso, subjacente) sertanejo: pacificidade, harmonia com os outros, com a família e com a natureza, tranqüilidade rural ("locus amoenus" caipira), sem estresse ou desarranjos psicológicos, sem esperar da vida grandes projetos e sobressaltos, integração com o Cosmos (este Cosmos pode ser a idéia de Deus: religiosidade sertaneja). Se o coração saltita e se o eu-lírico foge, é para buscar uma harmonia ainda mais profunda. Poder-se-ia dizer que, apesar de bonito, este é um discurso um tanto conformista, uma fuga da política, fuga ainda que inconsciente.
Pois bem. Muitas análises de discursos parariam por aí: relacionar idéias textuais a uma coerência discursa, a qual constituiria uma formação. A noção de "ethos" nos leva além.
A noção de "ethos" busca dar conta de entender o caráter e a corporalidade que um texto atribui ao seu enunciador. Se o texto atribui, ou, como veremos, uma semântica global atribui, o enunciador não ajusta seu corpo e seu tom mais eficiente aos seus propósitos, com a consciência que a tradição retórica supunha. O caso desta canção é interessante porque a correlação a um ethos implica muito mais o locutor (Sater) do que os seus autores; várias razões podem ser buscadas para isso, desde o fato de esses autores serem desconhecidos, até o caráter irremediavelmente presencial de todo ethos.
As posições discursivas (idéias) que dissemos anteriormente constituem uma figura de homem tranqüilo, de respiração compassada (a desritimia do coração é uma desritmia "boa"), de jeito despojado, de prazeres simples etc. O tom de voz é também uma manifestação corporal que configura o ethos: aqui, um tom de voz que, apesar da diferenciação da altura melódica (entre médios e agudos), permanece praticamente com o mesmo volume (sem gritos, sem muitos decibéis). O instrumental também reforça essa entonação.
Seria interessante um estudo que investigasse o ethos por trás dos gêneros e dos recursos musicais (veja uma postagem minha sobre uma canção de Raul Seixas e o ethos roqueiro-inconformado). Em grande medida, falar de um estilo de um cantor é identificar-lhe um ethos.
A caracterização física de Almir Sater neste video é coerente com tal ethos sertanejo: o chapéu, a movimentação corporal medida, o sorriso singelo e feliz. Talvez, não seja só uma conseqüência do ethos mas uma parte igualmente constitutiva deste. Mas, mesmo se só ouvíssemos a canção, poderíamos constiuir essa "figura" do enunciador que canta, darmos este caráter a ele, imaginarmos sua postura corporal.
A hipótese é que haveria uma semântica global que "englobaria" tanto as idéias quanto os "outros elementos", no caso, deste discurso sertanejo. Nesta canção, o traço semântico principal é o da "integração". A partir deste traço semântico básico, podemos derivar outras poucas noções intermediárias (prudência, tranqüilidade, pacificidade etc.), que determinariam tanto o que vai ser dito como a globalidade entre o dito e o agido (ethos).
quinta-feira, 28 de junho de 2007
Ouro de tolo (Raul Seixas)
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73
Eu devia estar alegre e satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Ah! Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro, jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social
Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador
Vou separar esta canção em dois enfoques do eu-lírico, que não coincidem com as duas partes em que a canção é musicalmente dividida. Não vou considerar esses dois enfoques como estanques; uma mesma estrofe pode conter ambos. São do que chamo "primeiro enfoque" os versos em que o eu-lírico demonstra sua insatisfação com um padrão de vida que, implicitamos, seja pretendido pela maioria das pessoas: por isso, o eu-lírico "deveria estar contente", junto com os outros (ou, os sonhos dos outros), mas não está. O segundo enfoque é trazido pelos versos (principalmente ao final de cada parte musical) que apresentam de forma mais elabora as razões de o eu-lírico não estar contente. O que o autorizaria a dizer é o fato de ter experimentado aqueles ideais de vida e não tê-los aprovado; a canção pode, assim, estar marcando a passagem do eu-lírico de um estado a outro.
A posição majoritária trazida pela canção convoca, em um domínio discursivo, vários discursos e instituições interligados, cujo denominador comum é defender uma vida regrada e planejada: do mercado de trabalho (ter um bom e estável emprego é algo valorizado no mundo competitivo), da religião (a prosperidade é alcançada com o apoio de Deus, o descanso do trabalho é sagrado e deve ser aproveitado sem excessos), da família (é bom ter uma família estável e poder dedicar-se a ela, é bom ter uma prole, ter herdeiros), da propriedade (ter um carro, ter uma casa) etc. Em suma, tudo isso pode ser identificado como ideais de classe média; uma vida mediana é o que estaria reservado a uma classe mediana.
É contra esses ideais e, poderíamos dizer também, contra as instituições que os veiculam que o eu-lírico se contrapõe. Para isso, o eu-lírico não só arregimenta a seu favor a memória discursiva do hedonismo (que trataremos a seguir), como pode se associar (na efemeridade de um interdiscurso) ao discurso socialista ou anarquista que se contrapõe àquelas instituições e àquelas ideologias.
Poderíamos encontrar naquela posição majoritária uma memória discursiva presente há muito pela via da tradição estóica, considerada seja na sua versão filosófica seja na vulgarizada. A figura chave para o estoicismo é a "Roda da Fortuna": o sujeito racional e regrado está mais ao centro da Roda e livre dos altos e baixos que o Destino (Fortuna) impõe à borda. O oposto do estoicismo seria o hedonismo, que pregaria a primazia dos prazeres e dos sentidos; é com esta posição que o eu-lírico fecha. A patrística buscou associar a tradição judaico-cristã à tradição filosófica, sobretudo estóica; daí, na canção, o discurso religioso vir a somar-se ao domínio ou à formação discursiva favorável pró-vida regrada pequeno-burguesa (sem "pecados" e com poupança). Por isso, é importante falarmos de memória discursiva, não com anseios empíricos e exaustivos, mas para indicar que os discursos possuem um passado e se organizam e se desorganizam em posições ou em formações discursivas, nunca completamente acabadas.
Observe estes versos:
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado
Engraçado que a canção diz "aí parado" e não o mais corriqueiro "aqui parado". E isso não é um problema de incoerência, muito pelo contrário; a canção está falando de um eu-lírico que não "pára quieto", que toma por princípio nunca estar em um "aqui" mas sempre se deslocando de um "aí" a outro. Podem ser, então, inúmeros "aís", mas pode ser um só (esta parece ser a melhor leitura): o "aí" marca uma diferenciação entre as duas posições discursivas trabalhadas pela canção; o "aí" é o lugar, agora distante, que o eu-lírico atribui aos acomodados, lugar em que ele não só deseja não mais estar, como já não está mais nele.
Estamos nos domínios de um gênero musical que crivou um dos mais repetidos lemas pró-hedonistas e anti-estoicistas: "sexo, drogas e rock'n'roll". E o eu-lírico (e mesmo, neste caso, o autor da canção) nos reporta este "ethos" de rebeldia, se não através de guitarras barulhentas, através de um outro recurso: falo do recurso ritmico das frases atravessadas, que parecem grandes demais para caberem na frase musical. Isso é condizente com o conteúdo da canção, que fala de alguém que não se adapta a uma vida "quadrada"; alguém que, para atestar que quer se colocar fora dos limites das "cercas e bandeiradas que separam quintais", precisa cantar apressadamente e extrapolando as cercas e bandeiradas que demarcam as frases musicais.
Já que estamos falando da última estrofe, o que dizermos dos dois últimos versos desta? Enigmáticos? Sim, e a linguagem cifrada também pode ser um atestado da não-adaptação do eu-lírico. A canção lança mão de uma metáfora, de grande poder imagético, como síntese definidora daquele eu-lírico. "Sonhar" muitas vezes é tido como "visualizar algo". Pois bem, o que o eu-lírico visualiza não são coisas comportadas, como o faz a maioria das pessoas; o que se "assenta" sobre o seu olhar é algo da ordem do impossível: um disco voador (repete, em certa medida, a caracterização do artista ou do poeta como um visionário ou como um portador de um olhar incomum). Ou melhor, algo ainda mais impossível que o impossível: "a sombra sonora de um disco voador". Essa imagem sinestésica e um tanto quanto inexplicável ganha força exatamente por ser sinestésica e inexplicável: a canção traz uma hipérbole para atestar o quanto o eu-lírico não compartilha os mesmos sentidos das pessoas comuns.
"A sombra sonora de um disco voador" indica a idiossincrasia, a grandeza e a loucura dos projetos do eu-lírico. "A sombra sonora de um disco voador" é principalmente a representação do "incômodo", que o eu-lírico reconhece como destoante do comportamento comum (considera-se um "sujeito chato") e que não pode ser explicado; neste sentido, sua posição hedonista pode não ser tão "feliz" assim.
sexta-feira, 15 de junho de 2007
Odeio rodeio (Chico César)
Chico César em Presidente Prudente. 20/05/2007
Odeio rodeio
E sinto um certo nojo
Quando um sertanejo
Começa a tocar
Eu sei que é preconceito
Mas ninguém é perfeito
Me deixem desabafar
A calça apertada
A loura suada
Aquele poeirão
A dupla cantando
E um louco gritando
“Segura peão”
Me tira a calma
Me fere a alma
Me corta o coração
Se é luxo ou é lixo
Quem sabe é bicho
Que sofre o esporão
É bom pro mercado
De disco e de gato
Laranja e trator
Mas quem corta a cana
Não pega na grana
Não vê nem a cor
Respeito Barretos
Franca, Rio Preto
E todo o interior
Mas não sou texano
A ninguém engano
Não me engane, amor
(Chico César, CD Compacto e Simples, 2005)
A música é interessante, a crítica é mordaz. Ótima também para aulas de português, geografia, história, sociologia etc. Quero mais destacar os três primeiros versos da terceira estrofe, e deixar o resto por conta do leitor. Não sei exatamente qual, mas uma canção sertaneja já disse isso antes (se alguém souber, me informe). Mas, saber qual não é o mais importante. Há uma relação de intertextualidade, seja o texto "original" localizável ou sejam os textos dispersos. Eu imagino um sertanejo, com seu "ethos" melodramático, enunciando aquelas frases; é verossímil porque está dentro da tópica (dos temas recorrentes), das frases possíveis e dos jeitos possíveis do discurso néo-sertanejo.
A questão é que, além de intertextualidade (retomar um outro texto), há também interdiscursividade (retomar para se opor). Segundo FIORIN (apud POSSENTI, "Observações sobre interdiscurso", mimeo), toda interdiscursividade é intertextual, mas nem toda intertextualidade é interdiscursiva. Ou seja: intertextualidade é quando um texto retoma um outro texto ou uma dispersão de textos, não importa como; interdiscursividade é retomar o dito, intertextualmente, para deslocá-lo de sua posição, provocando um diálogo entre discursos diferentes (alguns chamam isso de paródia, enquanto que a paráfrase estaria no mesmo espectro discursivo).
Nesta canção, o discurso amoroso do "sertanejo" é deslocado para o discurso politizado de Chico César: é o rodeio, e não a paixão não correspondida, o que tira a calma, fere a alma, corta o coração. Uma sátira parece ser amplificada quando se desloca o sentido do texto do satirizado para devolver o sentido modificado contra ele, o que resulta em um esgarçamento discursivo. Perceba que a letra oficial traz "a dupla cantando", enquanto que Chico César, nesta apresentação "ao vivo", diz "a Sandy cantando"; parece óbvio que "dupla" (sertaneja, claro), na gravação oficial, tem também a finalidade de evitar processos judiciais contra Chico César (o autor é o que responde pela obra, inclusive judicialmente); no show, vai "Sandy" mesmo, para que a crítica ganhe com a especificidade de atacar um "grande" sertanejo, sem perder o caráter geral (exatamente por ser "grande", "Sandy" significa, metonimicamente, o conjunto dos sertanejos que cantam e lucram com os rodeios).
Argumentos de duas formações discursivas não-contíguas (em outras ocasiões podendo ser antagônicas) são os principais, aqui convocados para o eu-lírico justificar sua contrariedade aos rodeios: o discurso anti-capitalista (4ª estrofe) e o discurso preservacionista/ ambientalista (3ª estrofe).
Para terminar, interessante perceber neste clipe a capacidade de "performance" desta canção. Uma canção simples, do tipo "cantar para fora". Os acordes (não-dissonantes), a batida do violão e a "pobreza" do arranjo representam certo despojamento da canção e aproximam esta do gênero musical "sertaneja" (também chamado por alguns de "sertanojo"; e dentre esses alguns, há alguns que o fazem para diferenciar o "sertanojo" do "sertanejo raiz" ou da "nova música de viola"). Talvez o eu-lírico (e ainda mais o autor, podemos dizer) esteja implicitando que não é o gênero musical o objeto do ódio, mas a posição majoritária dos que se vinculam a este gênero.
quinta-feira, 14 de junho de 2007
O samba da mais-valia (Sérgio Silva)
Sérgio Silva. O samba da mais-valia. Gravação e vídeo feito por alunos da Unicamp.
O professor de sociologia da Unicamp, Sérgio Silva, arrisca a composição deste samba, sobre a teoria de Marx (na primeira parte) e sobre a relação desta com questões brasileiras (na segunda). É necessário um pouco do que Maingueneau chama de "conhecimento enciclopédico" para compreender a canção, por serem inúmeras as menções. Para dar um só exemplo, citemos a intertextualidade da primeira estrofe com o dito marxiano: "O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso".
É também necessário um pouco de "conhecimento genérico" para compreender que o tema é um tanto incomum para o gênero "samba". Esse deslocamento causa certa graça e nos faz perguntar: "por que não um samba sobre a mais-valia?" Este samba se inscreve no que, na academia, é chamado "trabalho de divulgação", que seria preocupar-se em tornar o conhecimento acadêmico acessível a não-especialistas (e para isso não é preciso despretigiar os estudos mais aprofundados). Embora de forma não tão erudita, é recorrente ao gênero "samba" fazer-se de peças que trazem críticas sociais (por um viés popular, o mesmo tema é de certa forma tratado em "Samba do operário", de Cartola e outros). Isso seria um discurso fundador do samba, obviamente que negado pelas apropriações de cultura de massas.
O samba do operário (Cartola et alii)
Se o operário soubesse
Reconhecer o valor que têm seu dia
Por certo que valeria
Duas vezes mais o seu salário
Mas como não quer reconhecer
É ele escravo sem ser
De qualquer usurário(2x)
Abafa-se a voz do oprimido
Com a dor e o gemido
Não se pode desabafar
Trabalho feito por minha mão
Só encontrei exploração
Em todo lugar
Este samba não é do Chico Buarque; integra a canção "Linguagem do morro", gravada pelo Chico mas também não composta por ele. Citei "O samba do operário" na postagem que falava de "O samba da mais-valia" (leia, veja e ouça).
Reconhecer o valor que têm seu dia
Por certo que valeria
Duas vezes mais o seu salário
Mas como não quer reconhecer
É ele escravo sem ser
De qualquer usurário(2x)
Abafa-se a voz do oprimido
Com a dor e o gemido
Não se pode desabafar
Trabalho feito por minha mão
Só encontrei exploração
Em todo lugar
Este samba não é do Chico Buarque; integra a canção "Linguagem do morro", gravada pelo Chico mas também não composta por ele. Citei "O samba do operário" na postagem que falava de "O samba da mais-valia" (leia, veja e ouça).
terça-feira, 12 de junho de 2007
Mil Perdões (Chico Buarque)
Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais
Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)
Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair
Existem palavras que, ao serem ditas, fazem. Na verdade, todas as palavras têm um pouco disso, mas destaco aquelas que, ao serem ditas, necessariamente fazem o que estão dizendo que fazem (e fazem, além disso, outras coisas). Por exemplo, dizer "eu te advirto" ou "eu prometo" é fazer o que se está dizendo. Em alguns casos, para haver validade, o dizer depende de quem diz a quem, em que circunstâncias, etc: "está aberta a seção" faz algo se quem diz tem autoridade para abrir a seção, e este alguém está numa quase-seção ao dizer. Comecei falando disso porque dizer "te perdôo" é também fazer algo (mais detalhes, ver os "Atos de fala", de Austin).
A idéia é a seguinte: quando enuncio algumas daquelas expressões, e não há impedimentos circunstanciais, estou fazendo o que enuncio, independetemente de minha vontade, uma vez que o ato estaria inscrito na própria língua. Poderíamos nos perguntar se o locutor (aquele personagem imaginário que diz "te perdôo" na canção) está de fato perdoando, pois se trata de uma ficção, e a canção busca outras coisas que não o perdão ou que não o dizer que alguém perdoa outrém. Porém, para a cenografia (no sentido de Maingueneau, a cena específica que engrena o texto; ou, em termos mais simples, a "ceninha" criada pela obra) é de alguém que perdoa ao dizer "te perdôo". A partir dessa cenografia, a canção pode suscitar outras coisas.
Ainda: dizer "te perdôo" pode não fazer o perdão; se dissermos a um corinthiano: "te perdôo por você torcer pelo Corinthians", provavelmente não o estamos querendo perdoar. Mas os partidários dos atos de fala poderão dizer que, neste caso, o perdão está contido na expressão e, embora em um uso incomum, só é passível de ser entendido humoristicamente e/ou só pode ser tido como provocação se os interlocutores souberem do uso sério, primeiro, de "te perdôo".
A cenografia da canção é de um locutor dirigindo a palavra para oferecer perdão a uma interlocutor (que, provavelmente, não pediu perdão), provavelmente de sexos opostos. Mas, um homem dizendo para uma mulher, ou uma mulher dizendo para um homem? No meu entender, a canção deixa margens para ambas as possibilidades. Até, não é descabida a idéia de que a canção encena um diálogo e que cada estrofe é a fala de um locutor (e teríamos dois locutores e, talvez, dois enunciadores, como explicarei), talvez nesta ordem (por indicações de esteríótipos): mulher, homem, mulher, homem. Pode-se pensar também que não interessa para o autor quem está dizendo a quem (por isso não se refira a quem fala e não marque o gênero, como explicarei).
Procurei na internet para conhecer opiniôes e achei só uma ocorrência: o espetáculo "Palavras de mulher" (2005) incluiu "Mil perdões" entre as canções de eu-lírico feminino.
A canção não traz marcação de gênero em nenhuma palavra; no momento em que podia fazer isso, parece que Chico preferiu não fazer, a fim de manter o impasse: a palavra "exuberante" é comum de dois gêneros; se fosse, por exemplo, "magnífica" / "magnífico", saberíamos. Esse seria o argumento para defender que, para o autor, não interessa quem está perdoando a quem.
Tentemos, mesmo assim, prosseguir. Se as marcas morfológicas não dão conta de nos indicar, talvez as marcas discursivas nos ajudem. Mas, ainda assim, pode permanecer o impasse:
1) Argumentos para defender que é um locutor-homem falando para uma interlocutora-mulher: alguns esteriótipos femininos em relacionamentos afetivos são lançados, e o locutor-homem estaria pedoando-os (as mulheres vigiam, sentem ciúmes demais, são sensíveis, choram). Contra-argumentos: tudo bem que as mulheres façam perguntas demais, mas (já que estamos este ponto se funda nos esteriótipos) não perguntas relacionadas às vidas que andam juntas (1ª estrofe), ou seja, elas sabem (ou devem saber) da data do primeiro encontro, dos gostos, etc. Outro ponto é o "rodar exuberante", na 3ª estrofe, que é um ato atribuído normalmente à mulher e marcado pejorativamente quando atribuído a um homem (a menos que "rodar" não seja "girar em torno do próprio corpo" e sim "dar uma volta pela cidade"). (por favor, estou apresentando os esteriótipos, não dizendo se concordo ou não com eles)
2) Os contra-argumentos do ponto anterior podem ser argumentos para a defesa da existência de um diálogo (dois locutores), em que as estrofes ímpares seriam atribuídas a uma voz feminina e as pares, a uma masculina. Contra-argumentos: se a idéia de alternância não está expressa pela música, não deve estar latente, pois seria de uma leitura muito complicada. Os perdões devem estar sendo dados por um locutor a um interlocutor. E, se assim fosse, nesta gravação Chico e Daniela Mercury poderiam reproduzir exatamente essa alternância.
3) Os contra-argumentos de 1) e de 2) são argumentos para a defesa de que o eu-lírico é feminino. Mas, e quanto aos esteriótipos? Ora, nesse caso teríamos menos esteriótipos que em 1) e a chave seria entendermos essa mulher que fala como mais idiossincrática, sendo que, naquela relação fictícia, ao homem caberia o papel esteriotipado como "feminino" (com exceção, talvez do "bateres em mim", mas isso pode ser entendido também como uma atitude "feminina"). A voz feminina, neste caso, destoaria dos esteriótipos da submissão e do "sexo frágil".
Eu poderia dizer que defendo mais um ponto do que o outro. Mas, isso pouco importaria. Como diria Umberto Eco, pode não existir uma leitura só para um texto, mas não é qualquer leitura possível ou cabível. É preciso separar o adequado do inadequado. Talvez a 2) seja a mais inadequada. Como não quero optar, opto pela leitura 0), isto é, vou concluir à análise me preocupando com um outro ponto, chamando "locutor" aquele que "perdoa" e "interlocutor", aquele que é "perdoado". Quem quiser defender um lado, o outro, os dois, nenhum ou muito pelo contrário, pode postar em Comentário (ali abaixo) o seu voto, para assim termos um placar da disputa.
O final de "Mil perdões" (minha parte preferida) é misterioso e, dependendo da leitura, violento. A leitura mais banal de "Te perdôo por te trair" pode querer dizer que o locutor imputa ao interlocutor a "culpa" da traição. A traição pode ser a resposta daquele locutor contra tudo o que foi inventariado ("perdoado") na canção: "já que você fez tudo isso, minha forma de te perdoar ou de esquecer tudo é te traindo, e disso também peço perdão". Um perdão ao mesmo tempo condenatório, perdão-sem-perdão, estando a ironia no domínio do locutor, ou seja, no nível da cenografia, não extravasando para o autor. Os "mil perdões" (isso é mais que os "70 vezes 7" da Bíblia) seriam argumentos no sentido de justificar a traição.
Ou, poderíamos ter uma outra explicação (quantas!), mais complexa embora ainda na mesma direção do que expusemos: o locutor é de uma posição favorável a uma relação poligâmica, diferentemente do interlocutor; diria o locutor, assim: "amo / amei outras pessoas além de você; não acredito que amar outras pessoas seja uma traição, mas te perdôo por você achar que sim".
Mas, já que estamos complexificando, prefiro uma outra leitura, muito mais engraçada e menos óbvia para os leitures "ligeiros" (talvez não para o Chico), daquele trecho. Como se o locutor dissesse: "eu não te traio, mas já que você fica dizendo que eu te traio, eu te perdôo por você achar que eu te traio". Haveria duas vozes enunciativas nesse trecho: "te perdôo" seria do locutor e "te trair" seria a opinião que o interlocutor reserva (essas duas vozes também aparecem na interpretação do parágrafo anterior). O "te trair" é mantido na sua crueza - e não como a minha paráfrase -, para dar voz ao (ponto de vista do) interlocutor e para tornar mais encarniçada (mais poética, por que não?) a peleja, o choque de posições.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2007
Classe operária (Tom Zé)
Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé,
que vai defender a classe operária,
salvar a classe operária
e cantar o que é bom para a classe operária.
Nenhum operário foi consultado
não há nenhum operário no palco
talvez nem mesmo na platéia,
mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários.
Os operários que se calem,
que procurem seu lugar, com sua ignorância,
porque Tom Zé e seus amigos
estão falando do dia que virá
e na felicidade dos operários.
Se continuarem assim,
todos os operários vão ser demitidos,
talvez até presos,
porque ficam atrapalhando
Tom Zé e o seu público, que estão cuidando
do paraíso da classe operária.
Distante e bondoso, Deus cuida de suas ovelhas,
mesmo que elas não entendam seus desígnios.
E assim, depois de determinar
qual é a política conveniente para a classe operária,
Tom Zé e o seu público se sentem reconfortados e felizes
e com o sentimento de culpa aliviado.
(Tom Zé, No Jardim da Política, 1998)
Esta canção marca um eu-lírico que se coloca dentro do domínio da política, mais precisamente dentro do campo discursivo da esquerda. Sim, eu-lírico porque supomos que, apesar de se dizer "Tom Zé", o "cantor engajado", a voz é de uma persona do poema / da letra da canção. O eu-lírico "Tom Zé" é um específico desta canção, ao passo que o autor Tom Zé (quis que isso figurasse sem aspas) é a porção de um sujeito (jurídico?) "realmente existente" que assina e responde por esta e outas canções.
Dentro do campo político e de esquerda, há uma polêmica, entre uma posição menos mediada, chamada, com certo caráter pejorativo, "esquerdista" (ver Lenin, "Esquerdismo, doença infantil do comunismo") ou "trotskista" (mesmo sem alguns desses trotskistas e quase todos os críticos dos trotskistas não conhecerem tanto Trotsky assim), e uma posição que se julga menos imperativa, mais construtivista e de estratégia mais consolidada (por exemplo, de linha gramsciana). No Brasil, essa disputa pode ser vista em vários momentos, como nas propostas que diferenciavam alguns grupos da esquerda armada e a Ação Popular e suas derivações (década de 1960).
Não vou entrar nessa polêmica, até porque houve muitos simulacros (no sentido de Maingueneau) na caracterização de um lado por outro: por exemplo, os chamados trotskistas denominavam seus opostos de "reformistas", "conservadores" e até "igrejeiros", ao passo que estes últimos denominavam aqueles de "inconseqüentes", "desraigados da realidade histórica e social" e até "loucos".
A crítica de Tom Zé estabelece uma intertextualidade explicita e de discurso convergente com o filme "A Classe Operária vai ao Paraíso" (La classe operaria va in paradiso; direção: Elio Petri. Itália, 1971), relação que não vou aprofundar aqui por ser nítida a quem assistir à película.
que vai defender a classe operária,
salvar a classe operária
e cantar o que é bom para a classe operária.
Nenhum operário foi consultado
não há nenhum operário no palco
talvez nem mesmo na platéia,
mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários.
Os operários que se calem,
que procurem seu lugar, com sua ignorância,
porque Tom Zé e seus amigos
estão falando do dia que virá
e na felicidade dos operários.
Se continuarem assim,
todos os operários vão ser demitidos,
talvez até presos,
porque ficam atrapalhando
Tom Zé e o seu público, que estão cuidando
do paraíso da classe operária.
Distante e bondoso, Deus cuida de suas ovelhas,
mesmo que elas não entendam seus desígnios.
E assim, depois de determinar
qual é a política conveniente para a classe operária,
Tom Zé e o seu público se sentem reconfortados e felizes
e com o sentimento de culpa aliviado.
(Tom Zé, No Jardim da Política, 1998)
Esta canção marca um eu-lírico que se coloca dentro do domínio da política, mais precisamente dentro do campo discursivo da esquerda. Sim, eu-lírico porque supomos que, apesar de se dizer "Tom Zé", o "cantor engajado", a voz é de uma persona do poema / da letra da canção. O eu-lírico "Tom Zé" é um específico desta canção, ao passo que o autor Tom Zé (quis que isso figurasse sem aspas) é a porção de um sujeito (jurídico?) "realmente existente" que assina e responde por esta e outas canções.
Dentro do campo político e de esquerda, há uma polêmica, entre uma posição menos mediada, chamada, com certo caráter pejorativo, "esquerdista" (ver Lenin, "Esquerdismo, doença infantil do comunismo") ou "trotskista" (mesmo sem alguns desses trotskistas e quase todos os críticos dos trotskistas não conhecerem tanto Trotsky assim), e uma posição que se julga menos imperativa, mais construtivista e de estratégia mais consolidada (por exemplo, de linha gramsciana). No Brasil, essa disputa pode ser vista em vários momentos, como nas propostas que diferenciavam alguns grupos da esquerda armada e a Ação Popular e suas derivações (década de 1960).
Não vou entrar nessa polêmica, até porque houve muitos simulacros (no sentido de Maingueneau) na caracterização de um lado por outro: por exemplo, os chamados trotskistas denominavam seus opostos de "reformistas", "conservadores" e até "igrejeiros", ao passo que estes últimos denominavam aqueles de "inconseqüentes", "desraigados da realidade histórica e social" e até "loucos".
A crítica de Tom Zé estabelece uma intertextualidade explicita e de discurso convergente com o filme "A Classe Operária vai ao Paraíso" (La classe operaria va in paradiso; direção: Elio Petri. Itália, 1971), relação que não vou aprofundar aqui por ser nítida a quem assistir à película.
O homem que matou o homem que matou o homem mau (Jorge Ben)
Lá vem o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vem o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vem o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Pois o homem que matou o homem mau
Era mau também
Um perigoso pistoleiro
Não tinha pena de ninguém
Procurado por assaltos a banco
Roubo de cavalo e outras coisas mais
Chefe de quadrilha
Não queria a concorrência dos demais
Pistoleiro de aluguel
Cobrava 500 dólares
Pra mandar alguém pro beleléu
E com ele não havia xerife que parasse em pé
O xerife morria ou tinha que dar no pé
Mas um dia, para sorte de todos
Um homem bom e corajoso e ligeiro no gatilho apareceu
Foi aí que o homem mau tremeu
Pois seu lado fraco era a filha do ferreiro
A preferida do homem bom
Marcaram o duelo às duas horas de uma terça-feira
E nesse dia todo o comércio fechou
Só a funerária meia-porta baixou
E dois tiros se ouviram
No chão o homem mau ficou
Dizem que ele morreu foi por amor
E o homem bom com a recompensa que ganhou
Está casado e é xerife do local
Quando ele passa o murmúrio é geral
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
(Jorge Ben, Big Ben, 1965)
Esta canção é interessante pela questão da circularidade. A história termina da mesma forma como começou, com um novo homem assumindo o protagonismo, o que sugere menção a um estado de coisas "eternizado", em que os postos ou lugares sociais imprimem sua marca nos sujeitos, fazendo-os serem.
Lá vem o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vem o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Pois o homem que matou o homem mau
Era mau também
Um perigoso pistoleiro
Não tinha pena de ninguém
Procurado por assaltos a banco
Roubo de cavalo e outras coisas mais
Chefe de quadrilha
Não queria a concorrência dos demais
Pistoleiro de aluguel
Cobrava 500 dólares
Pra mandar alguém pro beleléu
E com ele não havia xerife que parasse em pé
O xerife morria ou tinha que dar no pé
Mas um dia, para sorte de todos
Um homem bom e corajoso e ligeiro no gatilho apareceu
Foi aí que o homem mau tremeu
Pois seu lado fraco era a filha do ferreiro
A preferida do homem bom
Marcaram o duelo às duas horas de uma terça-feira
E nesse dia todo o comércio fechou
Só a funerária meia-porta baixou
E dois tiros se ouviram
No chão o homem mau ficou
Dizem que ele morreu foi por amor
E o homem bom com a recompensa que ganhou
Está casado e é xerife do local
Quando ele passa o murmúrio é geral
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
Lá vai o homem, que matou o homem que matou o homem mau
(Jorge Ben, Big Ben, 1965)
Esta canção é interessante pela questão da circularidade. A história termina da mesma forma como começou, com um novo homem assumindo o protagonismo, o que sugere menção a um estado de coisas "eternizado", em que os postos ou lugares sociais imprimem sua marca nos sujeitos, fazendo-os serem.
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