sábado, 9 de maio de 2009

Iracema Voou (Chico Buarque)





Iracema voou
Para a América
Leva roupa e lã
E anda lépida

Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá

Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico

Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita

Uns dias, afoita
Me liga a cobrar:
- É Iracema da América!

(Chico Buarque. Álbum "As cidades", BMG 1998)


O nome "Iracema" foi um nome inventado por José de Alencar para nomear a personagem índia do romance homônimo (não é um nome autóctone indígena). Para o movimento indigenista, não poderia haver um nome mais representativo dessa terra: "Iracema", além de guardar a dicção do tupi, é "América" ao contrário.

Essa América tupiniquim, na canção de Chico, "invade" a América desenvolvida. A canção trata do tema da migração em busca de trabalho. É um mote para trabalhos escolares envolvendo fluxos migratórios, suas razões e suas expressões nesse tempo de globalização... "Não dá mole pra polícia" e "anda lépida" (sempre em fuga) são trechos que refletem as restrições à entrada de migrantes nos EUA e a condição ilegal de Iracema. Seria a globalização de fato democrática, potencializadora?

Mas convém que também nos atentemos para a canção em si, para a letra, o enredo, sua composição. "Lava chão numa casa de chá": destaca-se a sonoridade "chão" e "chá".

"Lava chão" é um hipônimo para "é faxineira". O narrador guarda empatia para com a personagem, o que nos leva a dizer que "lava chão" não a ofende, mas sim mostra que o narrador é afim à personagem, tão "direto" quanto ela.

Apesar do pragmatismo exploratório de "lavar chão", e apesar de estar desambientada com o clima ("leva roupa e lã"), Iracema parece estar gostando do lugar e tem também pretensões simbólicas no terreno estrangeiro: "ambiciona estudar canto lírico".

A palavra "lépida", proparoxítona, é uma "palavra em fuga", palavra veloz, condizente com a situação clandestina de Iracema. Na poesia, mais do que em qualquer outro lugar, a forma e o ritmo também significam.

É coerente à composição textual que Iracema namore um mímico: ela não domina o idioma inglês e teria encontrado alguém que com ela interaja bem.

O discurso saudosista é questionado; sobre ele há certo deboche: "Tem saudade do Ceará / mas não muita". Nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, mas pra Iracema é melhor estar nos States. O "chão" lavado lá é, na verdade, o mesmo "chão" lavado aqui, mas lá se remunera melhor, em termos absolutos.

Aliás, perceba-se a gradação ao final da canção: sai de um dizer aparentemente saudosista ("Tem saudades do Ceará") para relativizá-lo ("mas não muita") e, por fim, desmenti-lo, no orgulho que Iracema tem necessidade de transmitir a alguém, e o faz por telefone ("É Iracema da América!").

Algumas perguntas escolares:

1. De que lugar Iracema se origina?

R: O aluno pode deixar-se levar pelo último verso: "Iracema da América". Nesse caso, a preposição+artigo "da" não se refere à "origem de nascimento" e sim a uma "origem de onde se fala" (local de onde fala). Para responder à questão, o aluno deveria supor que, se Iracema tem "saudade do Ceará", é porque deve ter vindo de lá.

2. De acordo com a canção, a que se refere o termo "América"?

Na resposta 1, seria incorreto pensar que, se Iracema veio do Ceará, ela se origina da América, pois o Ceará integra a América. Na canção, "América" é uma metonímia para "Estados Unidos da América", o que, inclusive, pode até ser associado a uma tão falada prepotência imperialista estadunidense.

Ótima oportunidade para pensarmos que os sentidos não são estáticos. Podem ser refeitos pelo texto. Em outro contexto, "América" pode significar "continente americano", mas esse não foi o uso na canção.

3. A que lugar faz referência o termo "lá" (4a estrofe)?

R.: América.

4. Qual o trabalho exercido por Iracema? Como você identifica esse tipo de trabalho e o processo de migração de pessoas?

R: Trabalho de "Lavar chão"; faxineira. É visto como um trabalho não qualificado. Em geral, os migrantes de países periféricos exercem esse tipo de trabalho nos países centrais.

5. Com qual pessoa Iracema mantém maior relação afetiva? Relacione o ofício dessa pessoa com uma informação que é dada na segunda estrofe.

R: Com um mímico. Na segunda estrofe, é dito que ela "Não domina o idioma inglês". A mímica é um tipo de linguagem que facilitaria a interação de Iracema com essa outra pessoa; talvez disso decorra a empatia de Iracema para com o rapaz.

6. Como o termo "lépida" se relaciona com o verso "Não dá mole pra polícia"? Explique também o sentido deste verso.

R: "Lépida" quer dizer "ligeira". Ver, mais abaixo, nosso comentário sobre a sonoridade também escorregadia dessa proparoxítona. A situação de Iracema é, provavelmente, de trabalhadora clandestina (o professor deve comentar a migração à procura de trabalho e como razões econômicas justificam o comportamento xenófobo).

7. Observe o trecho do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias (1847):

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar –sozinho, à noite–
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


A penútima estrofe da canção guarda forte relação de intertextualidade com o trecho do poema acima. Diga se a posição de Iracema questiona ou reafirma a posição do eu-lírico do poema de Gonçalves Dias. Comente.

R: Os dois textos se contrapõem. O nacionalismo do poema se contrapõe com certo pragmatismo de Iracema. No fundo, há também as visões dos dois poetas: a visão nacionalista de Gonçalves Dias e a visão "modernista" e crítica de Chico Buarque, mais preocupado em trazer questões relacionadas ao mundo do trabalho. Para importante camada da intelectualidade brasileira contemporânea, uma visão nacionalista seria ingênua depois da experiência nacionalista da ditadura e depois das críticas sociológicas de que, na verdade, temos muitos "brasis".

8. Sem recorrer ao dicionário, que sentido você daria, pelo contexto, à palavra "afoita"?

R.: Iracema tem urgência em falar, e com orgulhosa, que está nos EUA. Há, subentendido, o discurso de que tudo o que é dos EUA é importante; discurso ao qual Iracema se filia. Ótima oportunidade para separarmos personagem e autor: provavelmente não é essa a posição de Chico Buarque, que está muito mais preocupado em relatar uma situação e um comportamento que julgá-lo. Buarque "deixa" Iracema falar.

9. De quem é a voz que nos fala no último verso do poema? É a mesma voz que fala nos outros versos? Explique.

R: É Iracema quem fala. O "narrador" nos anuncia que Iracema faz uma ligação. "É alguém de algum lugar" ("É Iracema da América") é um tipo de construção cristalizada, que nos traz a memória de uma conversa telefônica.

Além disso, há os marcadores ":" e "-", que indicam a transição para o discurso direto.

10. Onde Iracema está ao fazer a ligação e onde está o destinatário do seu telefonema?

R.: Iracema está na América (EUA). Chamar atenção para o "da" (origem) em "É Iracema da América". A preposição "de" é, nesse caso, uma palavra de conteúdo (isto é, uma palavra com sentido, pois dá idéia de lugar) e não uma mera palavra de função (como ocorre em outras ocorrências de "de").

11. Há quanto tempo você acha que Iracema está no lugar de onde ela faz a ligação telefônica? Transcreva um ou mais versos da canção que fundamentem sua resposta.

R.: Provavelmente há pouco tempo. "Não domina o idioma inglês".

12. O fato de Iracema ligar a cobrar nos diz o que sobre ela?

R.: Discutir a condição econômica de Iracema e dos migrantes em geral.

13. Diga uma figura de linguagem presente no verso "Lava chão numa casa de chá". Indique um outro verso em que o mesmo fenômeno ocorra.

R.: Aliteração (chão, chá), isto é, sons parecido dentro de uma mesma frase. Outros casos: o domina o idioma inglês (aliteração de ã, n, m, d).

14. Quanto tempo você acha que Iracema pretende ficar no lugar em que está? Transcreva um verso ou um trecho que justifique sua resposta.

R.: Para sempre, ou pelo menos um tempo grande (relatar o fato de que muitos migrantes vão para países centrais para poupar e depois regressar ao país de origem). "Se puder, vai ficando por lá / Tem saudade do Ceará / Mas não muita". Pode-se relatar, também, sua ambição em estudar canto lírico e seu orgulho de estar onde está ("me liga afoita").

15. O texto deixa implícito que um fator pode impedir que Iracema fique muito tempo no lugar em que ela está no momento da canção. Que fator é esse?

R.: Iracema pode ser deportada, por sua situação de estrangeira clandestina. Essa ameaça é representada, na canção, pela polícia.

16. O nome de Iracema forma um anagrama com outra palavra da canção. Que palavra é essa?

R.: IRACEMA - AMÉRICA. Anagrama é uma permutação (troca envolvendo todos os elementos) de letras.

17. Associe cada preposição das frases abaixo com um sentido:
1. Voou para a América.
2. Roupa de lã.
3. Com um mímico.
4. Iracema da América.

( ) local de onde se fala
( ) companhia
( ) movimento
( ) material de que é feito

R.: 4, 3, 1, 2.

P.S.: Bonito esse verso: "Lava chão numa casa de chá". Não é mero joguinho de palavras chão / chá. Há muita significação. "Chão" é palavra mais dura, pesada, é o ponto de vista da faxineira; já o "chá" é palavra leve, alegre, é o ponto de vista dos clientes do lugar.

Um comentário:

  1. Muito boa a análise.
    Parabéns. Adoro as canções do Chico.
    Mas, não havia conseguido extrair tanto
    significado da letra.

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