A voz desse eu-lírico parece fugir da fácil caracterização, do esteriótipo. Parece vir de lugar-nenhum, um lugar próprio entre o rural e o urbano (como a goma de mascar que é “ruminada” em “Goma de mascar”), o natural e o artifício (“mão como a haste de uma flor / e o que exalou de rosa e frasco”), a resignação e a revolta, a dúvida e a certeza. Pode ser apenas delírio, ou pode ser que o poema consiga atingir o global: “Medi com um aparelho de precisão / e por isso ouso afirmar / que estamos algumas semanas / do Sistema Financeiro Mundial”.
Algum poder sísmico deve ter essa palavra, algum incômodo ainda que singelo deve representar essa voz que se contrapõe ao senso comum, ao discurso dominante; essa postura de recusa está figurada como um “olhar azedo”, olhar que representa uma fotografia do interior e, ao mesmo tempo, uma ofensa ao estado atual das coisas: “Por que / não sei, mas está escrito / em letreiros, nos mistérios / da nossa fé, nos panfletos / no meu olhar azedo”. A dificuldade de racionalizar a perceptível crueza do presente se amolda a uma característica da poesia, que é a de dizer por metáforas, a de dizer aos poucos; ao mesmo tempo, pesa ao poeta a obrigação de dizer o mundo (ou mais que dizer o mundo: dizer para superá-lo), como se lê nos versos “O que diremos aos que chegam / na porta de nossa casa? / Aos mortos acompanhados dos lobos?”. Na dificuldade de dizer, o simples ato de ser e de colocar seu corpo no caminho já é significativo, como se lê no poema “O protesto somos nós”.
O eu-lírico, principalmente na primeira parte do livro, não entende direito a complexidade da opressão do mundo novo, mas suspeita de que algo não vai bem: “Na lua refletida do poço a placa / indica onde fica o mundo / e o que caminha em volta / não é o tigre, nem areia / que se move”.. Seus poemas são suspeitas, são hematomas em princípio de revolta, que talvez possam começar a ganhar forma quando escritos: “Que [o Pavão] estenda seu reino até as fezes dos comandantes, / que acorde o ar estragado da cidade”. O poema não é o resultado de idéias prontas, mas de idéias em processo. Lê-se esse primórdio de revolta no belo “Salmo”: “Alimento esse tigre a toda hora / com a pólvora dos dias, / com a lã de minhas noites, / com os galos nos dedos da aurora”.
A vida passada vai se esmaecendo pela ação do tempo. O poema é luta sem alarde contra o “fim da história”. É luta contra o fim do passado, por trazer lances desorganizados de memória (“O furgão levou muita gente com terra. / Levou metade da montanha / que meu pai mediu com a mão”). Se o tempo come a “fruta” (a memória), o ruído dessa ação evita exatamente que a fruta seja esquecida e deve ser denunciado: “Queda de uma pedra, / o tempo comendo a fruta. / É o ruído que passa por mim, / alimentando mais uma idéia”.
O passado não é buscado pelo saudosismo; o passado é objeto interditado pelo tempo e pelo presente torpe. Ao tentar o passado, o eu-lírico afirma sua identidade e recusa a homogeneização do presente, o que se lê nos versos: “Crescemos e amaldiçoamos o mundo. / As ruas talvez sejam procura da infância”. No poema “Nem me lembro quantos são”, o aparente saudosismo da lembrança de nomes de pessoas é rompido pelo sutil humor dos últimos versos: “Tive uma cachorra / que nem consta lá”. A tentativa do passado é, assim, luta contra o fim da vida presente, vida esmagada, de acordo com o livro, pelo capitalismo, em especial o capitalismo financeiro. O resmungo silencioso do poeta é a resposta “à altura” à opressão também dissimulada desses nossos dias “democráticos” e “pacíficos”, que, exatamente por sua dissimulação, mostram-se-nos muito mais cruéis.
Na parte final do livro, algumas pequenas certezas parece se colocarem ao eu-lírico (já seria um outro eu-lírico?), que passa a adotar um diálogo mais cosmopolita, ao afirmar a necessidade de transformações e revoluções sociais, recusando o fim das ideologias, recusando o fim do futuro. Se não há saudosismo, não há também esperança ingênua no futuro (“Amanhã? Uso máscara protetora / ao me aproximar dessa palavra”) e sim o reconhecimento da árdua tarefa de superar o cenário atual: “Nada é benigno, tudo é pedra / e não adianta falar com sua porta,/ convencer seu cachorro”.
A memória falha provoca uma fragmentação textual e de imagens, que, bem tratada pelo autor, fortalece a poesia, esse gênero entrecortado. Muitas vezes a fragmentação é usada para quebrar a grandeza do poema, ou melhor, para dizer que o poema, para ser grande, deve recusar a eloquência (por isso o livro é lição a muitos aprendizes). No poema “Venda em curva de estrada”, o ápice do poema é quebrado pelo berro de um jogador de truco: “Apenas o silêncio numa noite pura, / o clarão do fósforo mostrando / a dor mais embaixo // - Nove! Gritou o negro / ao sinal do diabo”. O grito do presente acorda o poema, que ao ver do eu-lírico não pode ser um refúgio seguro, um jardim suspenso sobre o presente. Outra forma de quebra é levada a cabo no poema “Dizeres na parede da Caverna”; qualquer pretensão de “profundo ensinamento” dos dois primeiros versos é desbancada pela elevação do figurante (menino) ao primeiro plano do poema: “Os rabiscos esquecidos que o olhar / deixa nas paredes da caverna.// O menino empurrando a carroça / nunca mencionado na fábula”. No trecho antes mencionado, vê-se a empatia do eu-lírico (e a visão aguda do poeta) em relação à margem, ao marginalizado.
Judiados (uso esse termo com o perdão dos etimologistas, para quem o sentido está no DNA da palavra) os poemas devem ser: escritos e reescritos, até fugirem do monótono discurso dominante; temos o produto dessa labuta nessa obra de maturidade de Getulio Cardozo. Mas judiada não pode ser a vida: e por isso ler esses “Cadernos” é uma fuga necessária para se identificar e transfigurar pequenos lances do massacre nosso de cada dia.
por Paulo J. Vieira, texto publicado no Jornal "A Mococa", 16/05/2009.
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