sexta-feira, 8 de maio de 2009

“Cadernos Judiados”, novo livro de poemas de Getulio Cardozo

Quem lê os “Cadernos Judiados” de Getulio Cardozo (lançados em abril de 2009 em Mococa) se depara com algumas imagens fixas, presentes em vários poemas: a mãe, o pai, os postes, os cachorros, as ruas, as pedras, os muros. Deus e o Diabo também estão presentes, mas sem a carga religiosa que normalmente se lhes atribui. Aliás, os poemas do livro trazem sempre uma visão deslocada, surpreendente, da parte de um eu-lírico que parece perpassar a maior parte dos poemas. “Porei na rua o meu hospício”, anuncia-nos o eu-lírico; mas esse “hospício”, essa “loucura” tem suas regras e sua ordem interna, representada na coerência dos temas, do ritmo e do tom.

A voz desse eu-lírico parece fugir da fácil caracterização, do esteriótipo. Parece vir de lugar-nenhum, um lugar próprio entre o rural e o urbano (como a goma de mascar que é “ruminada” em “Goma de mascar”), o natural e o artifício (“mão como a haste de uma flor / e o que exalou de rosa e frasco”), a resignação e a revolta, a dúvida e a certeza. Pode ser apenas delírio, ou pode ser que o poema consiga atingir o global: “Medi com um aparelho de precisão / e por isso ouso afirmar / que estamos algumas semanas / do Sistema Financeiro Mundial”.

Algum poder sísmico deve ter essa palavra, algum incômodo ainda que singelo deve representar essa voz que se contrapõe ao senso comum, ao discurso dominante; essa postura de recusa está figurada como um “olhar azedo”, olhar que representa uma fotografia do interior e, ao mesmo tempo, uma ofensa ao estado atual das coisas: “Por que / não sei, mas está escrito / em letreiros, nos mistérios / da nossa fé, nos panfletos / no meu olhar azedo”. A dificuldade de racionalizar a perceptível crueza do presente se amolda a uma característica da poesia, que é a de dizer por metáforas, a de dizer aos poucos; ao mesmo tempo, pesa ao poeta a obrigação de dizer o mundo (ou mais que dizer o mundo: dizer para superá-lo), como se lê nos versos “O que diremos aos que chegam / na porta de nossa casa? / Aos mortos acompanhados dos lobos?”. Na dificuldade de dizer, o simples ato de ser e de colocar seu corpo no caminho já é significativo, como se lê no poema “O protesto somos nós”.

O eu-lírico, principalmente na primeira parte do livro, não entende direito a complexidade da opressão do mundo novo, mas suspeita de que algo não vai bem: “Na lua refletida do poço a placa / indica onde fica o mundo / e o que caminha em volta / não é o tigre, nem areia / que se move”.. Seus poemas são suspeitas, são hematomas em princípio de revolta, que talvez possam começar a ganhar forma quando escritos: “Que [o Pavão] estenda seu reino até as fezes dos comandantes, / que acorde o ar estragado da cidade”. O poema não é o resultado de idéias prontas, mas de idéias em processo. Lê-se esse primórdio de revolta no belo “Salmo”: “Alimento esse tigre a toda hora / com a pólvora dos dias, / com a lã de minhas noites, / com os galos nos dedos da aurora”.

A vida passada vai se esmaecendo pela ação do tempo. O poema é luta sem alarde contra o “fim da história”. É luta contra o fim do passado, por trazer lances desorganizados de memória (“O furgão levou muita gente com terra. / Levou metade da montanha / que meu pai mediu com a mão”). Se o tempo come a “fruta” (a memória), o ruído dessa ação evita exatamente que a fruta seja esquecida e deve ser denunciado: “Queda de uma pedra, / o tempo comendo a fruta. / É o ruído que passa por mim, / alimentando mais uma idéia”.

O passado não é buscado pelo saudosismo; o passado é objeto interditado pelo tempo e pelo presente torpe. Ao tentar o passado, o eu-lírico afirma sua identidade e recusa a homogeneização do presente, o que se lê nos versos: “Crescemos e amaldiçoamos o mundo. / As ruas talvez sejam procura da infância”. No poema “Nem me lembro quantos são”, o aparente saudosismo da lembrança de nomes de pessoas é rompido pelo sutil humor dos últimos versos: “Tive uma cachorra / que nem consta lá”. A tentativa do passado é, assim, luta contra o fim da vida presente, vida esmagada, de acordo com o livro, pelo capitalismo, em especial o capitalismo financeiro. O resmungo silencioso do poeta é a resposta “à altura” à opressão também dissimulada desses nossos dias “democráticos” e “pacíficos”, que, exatamente por sua dissimulação, mostram-se-nos muito mais cruéis.

Na parte final do livro, algumas pequenas certezas parece se colocarem ao eu-lírico (já seria um outro eu-lírico?), que passa a adotar um diálogo mais cosmopolita, ao afirmar a necessidade de transformações e revoluções sociais, recusando o fim das ideologias, recusando o fim do futuro. Se não há saudosismo, não há também esperança ingênua no futuro (“Amanhã? Uso máscara protetora / ao me aproximar dessa palavra”) e sim o reconhecimento da árdua tarefa de superar o cenário atual: “Nada é benigno, tudo é pedra / e não adianta falar com sua porta,/ convencer seu cachorro”.

A memória falha provoca uma fragmentação textual e de imagens, que, bem tratada pelo autor, fortalece a poesia, esse gênero entrecortado. Muitas vezes a fragmentação é usada para quebrar a grandeza do poema, ou melhor, para dizer que o poema, para ser grande, deve recusar a eloquência (por isso o livro é lição a muitos aprendizes). No poema “Venda em curva de estrada”, o ápice do poema é quebrado pelo berro de um jogador de truco: “Apenas o silêncio numa noite pura, / o clarão do fósforo mostrando / a dor mais embaixo // - Nove! Gritou o negro / ao sinal do diabo”. O grito do presente acorda o poema, que ao ver do eu-lírico não pode ser um refúgio seguro, um jardim suspenso sobre o presente. Outra forma de quebra é levada a cabo no poema “Dizeres na parede da Caverna”; qualquer pretensão de “profundo ensinamento” dos dois primeiros versos é desbancada pela elevação do figurante (menino) ao primeiro plano do poema: “Os rabiscos esquecidos que o olhar / deixa nas paredes da caverna.// O menino empurrando a carroça / nunca mencionado na fábula”. No trecho antes mencionado, vê-se a empatia do eu-lírico (e a visão aguda do poeta) em relação à margem, ao marginalizado.

Judiados (uso esse termo com o perdão dos etimologistas, para quem o sentido está no DNA da palavra) os poemas devem ser: escritos e reescritos, até fugirem do monótono discurso dominante; temos o produto dessa labuta nessa obra de maturidade de Getulio Cardozo. Mas judiada não pode ser a vida: e por isso ler esses “Cadernos” é uma fuga necessária para se identificar e transfigurar pequenos lances do massacre nosso de cada dia.

por Paulo J. Vieira, texto publicado no Jornal "A Mococa", 16/05/2009.

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