sexta-feira, 27 de maio de 2011

Contra o Jung, tem aquela do Lennon

"Foi preciso imitar muito o Elvis Presley pra me tornar Jonh Lennon"

domingo, 19 de dezembro de 2010

Diário de meus delírios (Poema: Getúlio Cardoso; Música: André Melo; Voz e violão: Paulo Vieira)

Criei coragem para postar esta música, que está entre minhas preferidas. O poema é do poeta e advogado Getúlio Cardozo, de Mococa (SP). Embora não queira representar a realidade, este poema reflete um pouco do dia a dia do Getúlio, que, entre um caso jurídico e outro, cai na literatura. Ou, como diz o poema, por sobre o "mar de Ulisses", ou por sobre o covil de seus poemas, jazem seus processos e sua vida pública.

A canção foi feita por André Melo, um cantor e compositor da cidade de Assis (SP). O André musicou alguns poemas do Getúlio e do Ricardo Flaitt, outro poeta mocoquense. Quando ouvi a canção do André, fiquei impressionado com a beleza da música e do violão, que se encaixaram muito bem na letra-poema do Getúlio.

Tentei, então, reproduzir um pouco do violão e gravar com minha própria voz. Infelizmente, não sei onde fui colocar a gravação (informal, num barzinho) que o André tinha feito. Enquanto isso, vai um trecho com minha voz desafinada (essa gravação tem mais de 4 anos; hoje em dia minha voz é pior).



DIÁRIO DE MEUS DELÍRIOSGetúlio Cardozo e André Melo

São meus os cirros deste céu
São meus os cirros deste céu
Um pintor de paredes em meus ombros
pintou esses cirros em meu vergel

Minha também a glória desta pedra
e da eternidade, dela faço o que quero:
jardins decaídos ou primaveras

Tenho sobre o mar de Ulisses
ordenações, alvarás e veto
e o poema é meu covil secreto

Tenho na gaveta de minha escrivaninha
um édito lavrado a duras penas
com proibições sobre nardos e gardênias

Apodreceram em codicilos de velhas
(rotas de orvalho, murchas)
orquídeas, rosas, bromélias

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Trabalho com charges

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O gênero em destaque é "charge", mais especificamente "charge

política". O prof. pode trabalhar com o aluno o reconhecimento de

características de conteúdo e de forma (frases curtas, possibilidade

de haver fala dos personagens, o "destronamento" - no sentido que

Bahktin aponta em seus estudos sobre o humor na revolução francesa -

de personalidades políticas, a referência a fatos recentes, o lado

meio "datado" das charges, o seu caráter sintético, a exigência de

conhecimento prévio sobre os personagens e seus papeis sociais, os

traços caricaturais dos desenhos etc.



É possível o prof. buscar a intertextualidade entre a charge e textos

(principalmente de outros gêneros jornalísticos, como notíciais,

editoriais, colunas, artigos etc.) recentes, que possam ser

ferramentas para o aluno entender melhor a charge e perceber, em

funcionamento, o que é intertextualidade. È também importante discutir

se a charge é ou não um texto (defenderíamos que sim, com base na

definição de "texto" de Ingedore Koch).



Na verdade, o professor trabalharia muito mais com perguntas do que

com afirmações. Ao final, sim, poderia tentar uma síntese teórica e

interpretativa. As perguntas mais importantes para trabalhar a charge

são, ao meu ver: Em que lugar vocês acham que esta charge foi

veiculada / publicada? O travessão representa o quê? (R: a fala do

personagem). Os textos que lemos de outros gêneros jornalísticos nos

ajudam a entender melhor a charge? O desenho da charge é fidedigno?

Quem são esses personagens? Que função ocupam? Haverá punição dos

"retratados" contra quem desenhou? (pode-se discutir aqui o

cerceamento de ideias e o destronamento no sentido bahktiniano) O que

significa a palavras "cinzas"? A data da publicação da charge tem a

ver com isso? (provavelmente a charge foi próxima à quarta-feira de

cinzas) O gesto dos personagens representam o quê? (estão cabisbaixos,

pensativos) Há humor? Como funciona o humor? (a surpresa, o

destronamento, a caricatura, o deslocamento de sentido das palavras

"cinzas") As vestimentas dos personagens também se referem a algo?

(provavelmente fantasiados para o carnaval) Isso é um texto, é um

gênero? Vocês já viram esse tipo de texto em outros lugares? O que há

em comum entre esta charge e outras que vocês conhecem? (o prof. pode

trazer outras charges; a ideia com esta pergunta é trabalhar o fato de

os gêneros serem tipos cristalizados / repetitivos de texto, que têm

uma finalidade sociail, uma estrutura e um conteúdo próprios). Há

hipérbole? (exagero, outra característica da charge: hipérbole nos

traços, nas ideias etc.) O que há de real e o que há de ficção na

charge? É um gênero que pende mais para o ficcional ou para o real?

Todo texto de jornal é imparcial e retrata um fato da realidade? (a

charge é gênero jornalístico e não "reflete" a realidade; o prof.

pode, num segundo momento, questionar exatamente se algum texto pode

realmente ser imparcial, pois todos os sujeitos estão imersos no

discurso).



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A frase "eles só pensam naquilo" foi tirada do contexto sexual

(lembrado pela figura da "mulata" sambando) e traziada para o contexto

político (da disputa pela faixa presidencial). O personagem é

Garotinho, político carioca. Provavelmente, a charge fora publicada em

um período próximo ao carnaval, pois é comum às charges fazer

referência a fatos e datas específicas. Isto porque a charge é

sintética, ela não pode discorrer muito, contextualizar. Então, ela

pega fatos já contextualizados para fazer humor com eles. Isso exige

um conhecimento prévio do leitor, e também que este leitor estabeleça

relações intertextuais (entre a charge e outros gêneros, especialmente

jornalísticos) e interdiscursivas (entre o discurso destronado e o

discurso oficial realmente dito ou atribuível aos personagens

"reais").



A charge trabalha o implícito, o não-dito expressamente, mas que pode

ser reconstituído, a partir do conhecimento do leitor e do suporte

intertextual que ele tenha. A charge traz explicitamente o que existe

em outros textos, embora nem sempre de forma tão visível: a

necessidade de o leitor completar os sentidos do texto, isto é, o

leitor não é um ser passivo. Por haver tantos implícitos, o leitor é

sempre convocado a compreendê-los e desvendá-los, sob pena de o humor

não funcionar.



O prof. pode trabalhar com os deslocamentos de sentido das palavras

como ferramenta para produzir o humor, pode trabalhar com a junção

palavra-imagem no gênero charge, com provérbios populares (propor aos

alunos atividades em que os provérbios sejam tirados de seu contexto,

com o objetivo de gerar humor), trabalhar com outros gêneros de humor

(especialmente outros que também sejam sintéticos e contenham muitos

implícitos, como é o caso da piada ou dos "adivinhas").

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O assassino era o escriba (Paulo Leminski)

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida, regular como um paradigma da 1ª conjunção.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeitoassindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido na sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conectivos e agentes da passiva o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.

O juiz (Fernando Bonassi)

Tenho cargo. Tenho poder. Tenho a lei. Tenho sobrenome. Tenho motorista. Tenho manobrista. Tenho hérnia. Tenho datilógrafas. Tenho descontos. Tenho clientes. Tenho salário. Tenho crédito. Tenho ajuda de custo. Tenho verba de representação. Tenho segurança. Tenho saco pra tudo, desde que cifrado nos autos. Minha toga lavo escondido dos outros, entre os meus iguais. Tenho o direito. Tenho presentes (não tenho passado). O futuro, ao Supremo pertence. Se me ofendo, meto um processo pra escapar disso tudo. Data vênia: quanto à justiça, favor reclamar com bispo comunista, ou exército golpista.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Uma citação do Jung

Todos nós nascemos originais e morremos cópia.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Alguns poemas do livro "Um dia depois da natureza" (Paulo José Vieira)

Adanada

A Eva, Deus não fez de barranco:
- Mulher não é Estátua da Liberdade!

Achou-a mais poético da costela de Adão
e se exasperassem pela parte amputada
e se completassem na argamassa de maçã

Vejamos, também é coisa chã vir do barro...
às vezes me resseco e pra não trincar dão-me cápsulas de garoa
às vezes uns coronéis só aceitam me regar em troca de voto
às vezes me perfumo de vinho para dissuadir areia e escarro

Não há tanto mal em ser costela de Adão
A costela é que foi feita da mulher
depois da mulher é que a costela foi a costela

Se Deus fez assim foi para que a costela servisse à poesia
E Deus não deve ser machista, se homem Deus não é:
Deus é também mulher da costela do Nada


Do fetiche

de que vale a moto
sem batizar-se de
outdoor

a moto nunca engraxe
o moço nunca artrite

100cc menor é moto
fora de seu pedestal
ao sal do piche

enquanto desejo
eh astro ou vácuo
caspas nem atritos

arrebita o menino
a moto e o outdoor
mas se um dia a compra
pescoço já rebaixa

a própria moto já se sonha
já se encontra
noutra
fetiche do fetiche


A casa

Papelão na calçada
casaco a cachaça
menos que dorme um cão
que quarto de empregada

Arrebata cômodos
quarto, sala, penico
amada, amigos, urina

Se até a urina corroída
sem urina sem nada

Casaco a cacetada
cada esmero aquece
mais o esmeril esfole

Sem negro sem nada

Na rua dos lobos
por escolha pouca
é ele o zero

nele começa a alcatéia
de raça no leito
raça no peito do muro
seu CPF é o CEP da rua
inscrito no Livro dos Dias

mors ex-pressa

Tanto que sua morte
ainda que por atropelo
é vista sem pisoteio

Tanto que sua morte
ainda que estrebuchada
não sacoleja vara

Espessa é sua morte
somente se mutilada
Não pela humanidade
mas pela lógica devassada:
como assim dividir o nada?

Muito engraçada a casa
sem teto sem nada
por onde a frente fria entra
por onde um sopro escapa


Falcoaria

Falcão artificial
Não extravasa o muro
do quintal, nem do varal
a sua altitude

Crê que um grão mais ouro
se acha em cada espiga
Tem um itinerário cúbico
dentro da bolha de sabão

De unhas mais saúvas
que povoam a atmosfera

Só toma por porto o braço
Direito de seu mestre
com luva

Nesta, guarda o mestre
a obsessão por capturar
(por si ou por falcoarias)
o melhor ar, que até tape
o sopro de seu coração

À noite, colheita
Suas unhas por braços
e a viola por alçapão

Ó, pipa

Quis ele menino te desbicar
na goela de Ella Fitzgerald
Rincão em que o extraordinário
se abrigava quando ar

Tua vontade é duelo de outros
metade vento
metade linha
metade minha


Baldio ou filial

lodos e parafinas
choro entre a cera
em baldias madeiras

verniz desprepara

o sol mitiga, racha
anos adentram

criança entre caibros
não nascida
valoriza o terreno

maior o desuso
retorcido

ninguém nunca neve
more ali, somente acresça

desabrocha uma espinha

desconjunto

armazém das evitações
o império já habita
aquilo a sovaco


Grilo a Priscila

priscila, priscila

o grilo fixo pulveriza
no croqui da boca, estribilho
resquícios de um biscoito fino

priscila, priscila

no muro de casa funciona
uma campainha invertida
me avisa você de partida


Os espantalhos

Meu avô dominava a tecnologia de espantalhos
Fez um que com incenso na boca até tragava
Fez uma fêmea de cabelo de fogo que Nhô Bartô
amou sobre o leito de rúculas

Pensei que meu avô tivesse hortas por pretexto
Demorava-se mais agricultando gentes

Emprestou da biblioteca um Da Vinci
e escondeu na madrugada
(ou na própria Mococa)
essa herança

Não que precisasse dos préstimos humanos
Fazia público por precisão das economias
para mais se matutar no que lhe aprazia demasiado:
Ludibriar passarinho com requintes de crueldade

Quando aturdia que espantalho ia se empenhar nisso
e não ser conviva ou cortina para sala de visitas
meu avô cobrava menos que linhas e panos

Tanta encomenda que um canteiro era de espantalhos
Também havia encomenda de bonecas
gestadas de vestido por espantalha adulta

Meu avô dotava os passarinhos de nossa lógica

Espantalho já era a hortaliça que mais vendia
Um homem comprou de meu avô um maço

Um dos espantalhos tinha passaporte búlgaro
Outro trazia uma conta de luz que por vencer
Outro empinava papagaio e fazia bolhas de sabão
Outro fazia tenção de disparada atrás de folia de reis
Outro parou enxadada no ar em pose para Coimbra
Outro ouviu a história de Carmem e tinha olhar absorto

Nunca houve ali uma hortaliça ultrajada
Pássaros no ninho já medravam nesses deuses

A polícia um dia veio prender o meu avô
Não por formação de milícia contra os pássaros

Dizia-se que ele desesperançava homens e os empregava


Teatro do sétimo dia

O autor (aqui):
Preciso publicar isso em livro
E descansar, sossegar de debruns

Deus (Gn 1: 31):
Vejo que tudo é muito bom

Darwin (A origem das espécies, 1ª parte, § 2):
Deus depois retocou


Luís Antero Echeverría

que cesta diversa
no nome carrega
Luís Antero Echeverría

Cores sem critério
de acerolas a uvas
desmedidos sons
colidem-se frutas

de água e ezeite
de quinjica e poçoca
de zubu e mangau

No seu isopor
tamanho festival
aquarela e bistrô
um peito arsenal

Esgarçando vistas
vizinhas se cogitam
eleitas a visitas

Não só ele a tenha
do peito infinita

cesta das delícias
sem nenhuma cerca
são delícias enxertas

começa no queijo
e lhe arrebenta a nuca
começa na abóbora
e alcança uma grávida
começa na terra
e descansa domingo
começa na estufa
e se desdobra em varal

Por toda a vila
jamais retilíneo
entrega panfletos
de simples frescor

começa na Amanda
dona da quitanda
e acaba na Úrsula
de glote que ulula


Arbitrário

O poço artesiano
ocupa o centro de povoado em seca

Foi sabotado por pimenta
por monturo de unhas aparadas
à bala de fuzil

Nem por isso o fim do mundo
Nem por isso Deus castiga
Nem por isso a rebelião

O mundo não é onomatopéia
(soam o oposto no jogo de espelhos)

A artéria do fazendeiro não será obstruída

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Money for nothing - Dire Straits




MONEY FOR NOTHING (Mark Knopfler)

Now look at them yo-yo's that's the way you do it
You play the guitar on the MTV
That ain't workin' that's the way you do it
Money for nothin' and chicks for free
Now that ain't workin' that's the way you do it
Lemme tell ya them guys ain't dumb
Maybe get a blister on your little finger
Maybe get a blister on your thumb

We gotta install microwave ovens
Custom kitchen deliveries
We gotta move these refrigerators
We gotta move these colour TV's

See the little faggot with the earring and the makeup
Yeah buddy that's his own hair
That little faggot got his own jet airplane
That little faggot he's a millionaire

We gotta install microwave ovens
Custom kitchen deliveries
We gotta move these refrigerators
We gotta move these colour TV's

I shoulda learned to play the guitar
I shoulda learned to play them drums
Look at that mama, she got it stickin' in the camera
Man we could have some fun
And he's up there, what's that? Hawaiian noises?
Bangin' on the bongoes like a chimpanzee
That ain't workin' that's the way you do it
Get your money for nothin' get your chicks for free

We gotta install microwave ovens
Custom kitchen deliveries
We gotta move these refrigerators
We gotta move these colour TV's, Lord
Esse cara tem Money for Nothing e as garotas à vontade!!

Now that ain't workin' that's the way you do it
You play the guitar on the MTV
That ain't workin' that's the way you do it
Money for nothin' and your chicks for free
Money for nothin' and chicks for free

Três ressalvas, antes de começar meu (espero, breve) comentário sobre a canção:

1) A gravação não é do Dire Straits. Seu krunner até está no palco (o grande Mark Knopfler), junto com Eric Clapton, Sting e Phill Collins.

2) O melhor vídeo-clip não é o acima apresentado, mas o que vai ao final deste post. Escolhi o primeiro clip por causa que está legendado.

3) Está legendado, mas a tradução é fraca. No título, preferiria traduzir por "Dinheiro fácil", que seria uma tradução mais "direta ao ponto".

Vamos ao comentário, que se bastará a um (complexo) ponto. No clipe original (abaixo), vemos com mais clareza a figura dos "carregadores de móveis e eletrodomésticos", que aqui bem que poderiam ser "carregadores de piano". O ponto de vista da canção é o ponto de vista desses carregadores. Mas, por quê? Já que comecei o post levantando três ressalvas, vou manter o número cabalístico e elencar três motivos para a escolha desses "narradores", buscando demonstrar como ela ajuda na construção de sentidos da canção.

1) Por serem os carregadores que "falam", os músicos do Dire Straits não passam por pedantes.

2) Se os carregadores de móveis e eletrodomésticos chegaram à conclusão de que os boyzinhos da MTV não entendem de música, qualquer outra pessoa poderia chegar à mesma conclusão.

3) Por fim, os carregadores de móveis são uma metáfora dos Dire Straits e outros "músicos sérios", que "se esforçam" para criar letras e músicas de qualidade.

Não desenvolvi os três pontos acima, mas acho que consegui mostrar uma chave de leitura para essa canção, que considera que gosto se discute sim!

Aliás, quando se diz que quatro coisas não devem ser discutidas, é exatamente porque se sabe que são as quatro coisas mais polêmicas, ou seja, as únicas coisas que de fato merecem uma boa discussão: gosto, política, religião e sexo!

Aqui vai a melhor versão para a canção:

http://www.youtube.com/watch?v=VOD805iAqjY

Achei esse comentário na hilária Deciclopédia sobre como a canção teria sido composta (não o leve a sério).

Composta pelo Mark Knopfler, Money for Nothing tem uma história um tanto anormal. Mark e John estavam no apartamento coçando o saco e cansados de não fazerem nada o dia todo, decidiram sair para caçar algumas guitarras.

Passaram pelo Shopping, entraram nas Casas Bahia e foram à parte de instrumentos. Ouviram ali perto um cara reclamar da vida, do trabalho, da mãe, do chefe e do mundo. Reclamava que era um burro de carga e que deveria ter aprendido a tocar instrumentos musicais.

Com isso, Mark sentou num sofá e começou a escrever a saiu essa música.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sousândrade - O Guesa (canto décimo)

A Bíblia da família à noite é lida;
Aos sons do piano os hinos entoados,
E a paz e o chefe da nação querida
São na prosperidade abençoados.
-- Mas no outro dia cedo a praça, o stock,
Sempre acesas crateras do negócio.
O assassínio, o audaz roubo, o divórcio,
Ao smart Yankee astuto, abre New York.

domingo, 31 de maio de 2009

Quem é cover de quem? (Itamar Assumpção)




Nessa canção, o saudoso Itamar Assumpção relata seu drama pessoal (rs) de ser confundido com Luiz Melodia.

Nasceste no Rio, Estácio
eu em São Paulo, Tietê
Os nossos passos com passos
afirmam ter tudo a ver

Não só na tonalidade
e também no jeitão de ser
Circula pela cidade
que sou cover de você

Tu és o Pérola Negra
já desde setenta e dois
Eu inventei Beleleú
só oito anos depois

Além desta pela preta
coisa comum em nós dois
Idéias músicas letras
não são só feijão com arroz

Dizem formarmos de fato
um belo par de malditos
Te chamam de Negro Gato
me tratam de Nego Dito

E já que talento é inato
isso tudo estava escrito
Num mundo cheio de chatos
até que somos São Beneditos

No mais sambamos de tudo
Funk soul blues jazz rock and roll
Trocamos tudo em miúdos
gravamos num disc show

Paixão amor sobretudo
aquele que começou
Mais grave ou mais agudo
slow speed or speed slow

Só falta agora contar
o que que houve outro dia
Assim que entrei num bar
desses da periferia

Alguém começou gritar
jurou que me conhecia
Mas no lugar de Itamar
disparou "Luiz Melodia"!

E é por essas e outras
que vamos contemporâneos
Compositor tão ilustre
Que bom ser teu conterrâneo

Tu abres eu fecho a boca
já tem mais de vinte anos
Então baby não se assuste
Pérola Negra, eu te amo

(Itamar Assumpção, "Bicho de Sete Cabeças, Vol. 1", 1993)

sábado, 30 de maio de 2009

As cidades, os sonhos

As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas sejam enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa.
Italo Calvino

terça-feira, 26 de maio de 2009

Quarteirização, uma ótima opção?

Para quem achava ruim a onda das terceirizações, que desmonta o serviço público e coloca patrões para serem empregados de outros patrões, precarizando sobremaneira os trabalhadores, pode até começar a achar a ideia razoável ao ouvir falar em "quarteirização".

É mole?

E sempre o mesmo argumento: o que não for atividade-fim (atividade típica), que seja terceirizada. Leia-se: os trabalhadores que não realizam as tais atividades típicas que sejam sub(em todos os sentidos de "sub")contratados por empresas terceirizadas, quarteirizadas, quinterizadas...

Trago abaixo um excerto da dissertação de mestrado (ah, bom, era da Universidade Anhembi-Morumbi) em que o autor Carlos Roberto Bernardo defende a quarteirização.

Para as organizações que são abertas à realidade e às mudanças, que há muito vêm delegando para terceiros aquelas atividades intermediárias de sua empresa, quarteirização é uma ótima opção. O termo define um método de resolução de problemas que a modernidade trouxe e muitas empresas ainda não se deram conta. Para competir no meio do atual ambiente dinâmico, uma organização não pode dispensar energia com administração de problemas que fogem do seu objetivo e quarteirizam para serem excelentes nas suas atividades essenciais.

A genericamente intitulada quarterização é a terceirização elevada ao expoente da vanguarda, com a contratação de uma empresa especializada para gerenciar as empresas terceirizadas É uma técnica de administração e avaliação contínua da qualidade dos serviços prestados. A empresa de quarterização deve servir de elo entre a tomadora de serviços e as prestadoras, fazendo com que a tomadora só tenha um interlocutor.

Carlos Roberto Bernardo, "Terceirização: vantagens e desvantagens do contrato de gestão da administração. Estudo de caso do Novotel - São Paulo Center Norte", São Paulo: Mimeo, 2007, p.34.

A sociedade e o social

O exame da linguagem corrente hoje no Brasil constata uma curiosa oposição entre os termos "sociedade" e "social". Isso ocorre, em particular, no seu uso por parte de empresários, políticos e jornalistas – para começarmos por uma caracterização profissional.

Mas também sucede, para passarmos a uma determinação política, que, porém, se sobrepõe à primeira, por parte dos setores mais à direita. Estes últimos anos, no discurso dos governantes ou no dos economistas, “a sociedade” veio a designar o conjunto dos que detêm o poder econômico, ao passo que “social” remete, na fala dos mesmos governantes ou dos publicistas, a uma política que procura minorar a miséria.
(Renato Janine, em: http://www.renatojanine.pro.br/Livros/asociedade.html)

Lei Rouanet... no Ensino Superior?

Cito trecho do texto de Jorge Antunes (prof. titular da UnB), no Correio Braziliense.
Recentemente, a imprensa divulgou uma proposta de financiar as universidades por meio da Lei de Incentivos Fiscais. Seriam permitidas deduções do Imposto de Renda de entidades que investirem em bolsas de estudo, reformas, pesquisas e outras ações. A proposta seguiria o mesmo princípio da Lei Rouanet, que já garante isenção de tributos para empresários que destinam seus impostos a atividades culturais e esportivas.

Fica difícil decifrar o que está por trás desse projeto. Aos desavisados, a proposta soará como ideia brilhante que salvaria a pesquisa e o ensino superior do Brasil. Aos conhecedores das motivações escusas da política cultural vigente, fica a dúvida: a trama pode estar envolta em ingenuidade e boa-fé, mas pode também ser fruto de estratégias voltadas à privatização total e definitiva do ensino superior, cada vez mais tratado como mercadoria.

(Jorge Antunes, “O financiamento das universidades e a tramóia dos privatistas”. Correio Braziliense, 16/3/2009, p. 13)

Barreiras de concreto 'fecham pobres em guetos' no Rio, diz 'Times'




Texto extraído do site da BBC.

Muros aumentam divisão social na cidade, segundo o jornal

Os muros em construção pelo governo ao redor das favelas nos morros do Rio de Janeiro estão dividindo ainda mais uma cidade já separada entre ricos e pobres, afirma reportagem publicada nesta terça-feira pelo diário britânico The Times.

O jornal observa que os críticos do projeto dizem que as barreiras de concreto, de até três metros de altura, transformarão as favelas em guetos, segregando os seus habitantes ao separá-los das áreas mais ricas.

A reportagem comenta que o governador do Rio, Sérgio Cabral, argumenta que seu projeto de cercar 13 favelas tem como objetivo evitar que sua expansão destrua a vegetação dos morros.

Mas o jornal diz que "em uma cidade rachada pela violência, pela desconfiança e pela desigualdade social, poucos acreditam nele".

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Manifestações contra Gilmar Mendes



Vídeo em que o Ministro Joaquim Barbosa (foto) fala o que muita gente queria dizer ao Ministro Gilmar Mendes (Abril/2009).

Para contextualizar, segue texto recente do site midiaindependente.org.

Saia, Gilmar!
07/05/2009 às 15:54

Nesta quarta-feira cinco mil velas foram acesas em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, numa manifestação para que Gilmar Mendes, presidente da instituição, deixe seu cargo. Protestos simultâneos ocorreram em São Paulo e em Belo Horizonte.

Depois de provar sua corruptibilidade e parcialidade no caso do banqueiro Daniel Dantas, e por criminalizar e destratar movimentos sociais e populares, Gilmar Mendes atestou sua incapacidade de representar o poder judiciário brasileiro. E por isso, está demitido!

Uma profunda indignação e repulsa culminou na organização de diversas movimentações civis, entre elas a campanha 'Saia às Ruas', que conclama para que retomemos os espaços de deliberação política: "O povo já tirou o Collor e tirará Gilmar Mendes!". Mais manifestações ocorrerão nas próximas semanas. Participe em sua cidade!

sábado, 23 de maio de 2009

Conclusão: Existem gatos que são aquáticos!

(Fundação Carlos Chagas - Concurso TRT-PR / 2004) Observe a construção de um argumento:
Premissas: Todos os cachorros têm asas.
Todos os animais de asas são aquáticos.
Existem gatos que são cachorros.
Conclusão: Existem gatos que são aquáticos.
Sobre o argumento A, as premissas P e a conclusão C, é correto dizer que
(A) A não é válido, P é falso e C é verdadeiro.
(B) A não é válido, P e C são falsos.
(C) A é válido, P e C são falsos.
(D) A é válido, P ou C são verdadeiros.
(E) A é válido se P é verdadeiro e C é falso.


Comentários:

Dizem que todo poeta (inclusive os formais) e todo linguista (exceto os formais) são inimigos da lógica. Penso, entretanto, que esses poetas e linguistas querem o rigor da lógica para lutar contra a lógica.

Ironias à parte, convém ressaltar que a linguistica tem seus méritos ao desbancar a lógica e defender que a língua tem uma lógica própria, ou uma falta própria de lógica. E a poesia também.

Conheço amigos da área de exatas que me disseram que, após estudar lógica, passaram a dominar melhor a língua. Sei lá, acho que passaram a se enganar na língua de um jeito diferente. A lógica pode ser muito útil à linguagem matemática e computacional, mas encontramos na língua um sem-número de falhas a desmentir a lógica.

Esse mesmo amigo disse que a língua portuguesa era falha, pois, quando dizemos "Eu não vi nada", uma negação anularia a outra, resultando em uma afirmação: "Eu vi algo".

Puxa, que pensamento rasteiro. A lingua é falha sim, mas não só a língua portuguesa. E, graças às falhas da língua, vemos que a lógica também é falha. Inclusive, a dupla negação também existe no francês: "Je ne .... pas...". A dupla negação talvez seja mais uma "ratificação" da negação do que uma "retificação" dela.

Interessante dizer que, mesmo a gramática gerativa - formal por natureza - não é tão formalista quanto esse meu amigo lógico, pois ela considera "Eu não vi nada" como uma frase com sentido de negativa e busca formalizar (às vezes) explicações para esse tipo de construção.

Bom, vamos à questão que abre esse post.

Um argumento pode ser válido ou inválido. Será válido se sua conclusão for resultado necessário de suas premissas.

Sobre as premissas e a conclusão, podem ser verdadeiras ou falsas.

Assim, temos na questão acima que as premissas e a conclusão são falsas e o argumento como um todo é válido(!). Isso porque a lógica diz não se preocupar com a verdade das coisas (sempre refutáveis), mas com a estrutura formal.

Entretanto, para responder à questão, é preciso saber que, no mundo, cachorros não têm asas, que nem todo animal de asa é aquático, que não existe gato que seja cachorro e que não existe gato aquático.

A validade do argumento parte do pressuposto de aceitação das premissas. Falsas ou verdadeiras, as premissas são aceitas e, se não contraditórias entre si, delas resultar uma conclusão sempre inequívoca, o argumento como um todo será válido.

Para acharmos a validade do argumento, podemos construir conjuntos (seria melhor desenhá-los):

Premissa 1 - Todo cachorro está contido no conjunto dos animais com asas; (Desenhe um círculo dos cachorros dentro do círculo dos animais com asas)

Premissa 2 - Todo animal com asa está contido no conjunto dos animais aquáticos; (Desenhe um círculo dos animais aquáticos abarcando todos os animais com asas; logo, abarcando também todos os cachorros)

Até agora, concluímos que todo cachorro é animal aquático, pois, se os cachorros estão dentro do conjunto dos animais com asas, e os animais com asa estão dentro do conjunto dos animais aquáticos, todo cachorro pertence ao conjunto dos animais aquáticos.

Premissa 3 - Sabendo que existem alguns gatos que são cachorros, e sabendo que todo cachorro é aquático,

Conclusão - Concluímos que alguns gatos (pelo menos aqueles que são cachorros) são aquáticos.

A conclusão é decorrência necessária das premissas, pois não é possível que algum gato não seja cachorro. Assim, o argumento como um todo é válido, apesar de as premissas e a conclusão serem falsas.

Gabarito C.

E se a conclusão fosse: "Existem gatos que não aquáticos"?

Essa conclusão não seria necessariamente verdadeira; o que se sabe é que há gatos aquáticos, mas a questão não disse se, além desses, existem outros gatos. Estaríamos diante, portanto, de um sofisma, isto é, uma cadeia argumentativa cuja conclusão não é resultado necessário das premissas.

O mesmo ocorreria com "Não existem gatos aquáticos".

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A Petrobrás dá ao setor ambiental a mesma importância que dá ao seu setor produtivo

Interessante notarmos que, por ser, supostamente, uma equivalência ("a mesma importância"), a frase acima poderia ser invertida, pelo menos do ponto de vista da Lógica:

(2) "A Petrobrás dá ao setor produtivo a mesma importância que dá ao seu setor ambiental".

Porém, sabemos que a frase (2) não é sinônima da frase título; mais um desses casos em que o sentido não se rende à pura Lógica; ou melhor, mais um desses casos em que o sentido mostra sua lógica "pura"...

Talvez porque a frase título seja uma hipérbole, algo como: "a Petrobrás tem dado muita, mas muita mesmo, importância ao setor ambiental".

Mas, como podemos pensar que a frase título é uma hipérbole? Aí entra o discurso. Discursivamente, sabemos que, na sociedade capitalista, a produtividade é o que importa; mas, cada vez mais, por marketing ou por razões quase sinceras (mas nunca ao ponto de fazer com que as preocupações ambientais se igualem às produtivas), tem-se falado muito em "desenvolvimento sustentável".

Outra coisa é a própria estrutura desse tipo de construção (o que também se explica pelo discurso), em que a novidade (o termo realçado, hiperbolizado, movimentado) aparece no início da construção, e o termo óbvio, ao final.

(3) O PIB da China já é do mesmo volume que o PIB da Alemanha.

Na frase (3), supõe-se que a igualdade tenha operado mais por causa do aumento do PIB da China do que pela queda do PIB alemão.

Talvez por causa desse tipo de construção, e pela memória discursiva do discurso ambientalista (apresentada mais acima), que a frase (2) nos parece tão descabida.

E, quanto mais a frase (2) nos parece descabida, mais a frase título se nos apresenta menos como uma igualdade de (2) e mais como uma hipérbole.

American (a)way of life

O texto abaixo (sem o título deste post no original) é um trecho do livro de Ralph Linton.

O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestiário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.

Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário tem a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.

De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast, com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria prima o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de alguma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.

Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano.
Fonte: LINTON, Ralph. O homem: Uma introdução à antropologia. 3ed., São Paulo, Livraria Martins Editora, 1959.

domingo, 17 de maio de 2009

Dois trailers: "Ônibus 174" (2002) e "Última parada: 174" (2008)

1. "Ônibus 174" (Documentário, Brasil, 2002; Direção: José Padilha).

2. "Última parada: 174" (Ficção, Brasil, 2008; Direção: Bruno Barreto)


Ainda não assisti ao segundo filme. Ao primeiro, assisti, e recomendo-o. Muito bem construído, vai num "crescendo" e prende a atenção. Uma das passageiras é muitíssimo inteligente e seus comentários funcionam como "a voz do filme".

Só para não esquecermos da violência policial e urbana, do desrespeito aos direitos humanos e dos obstaculos colocados à juventude.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

No dia em que eu vim-me embora (Caetano Veloso)



No dia em que eu vim-me embora
minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
e eu nem olhava pra trás

No dia que eu vim-me embora
não teve nada de mais

Mala de couro forrada
com pano forte brim cáqui
Minha vó já quase morta,
minha mãe até a porta

Minha irmã até a rua
e até o porto meu pai

O qual não disse palavra
durante todo o caminho

E quando eu me vi sozinho,
vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
nem dos sonhos que eu sonhava

Senti apenas que a mala
de couro que eu carregava
Embora estando forrada
fedia, cheirava mal

Afora isto ia indo,
atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo
sozinho pra Capital

Nem chorando nem sorrindo
sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital...

Algumas questões escolares sobre a canção:

1. A ida do eu-lírico sugere uma viagem temporária ou permanente? Retire um trecho da canção que sustente a sua resposta.

2. De onde você acha que o eu-lírico está saindo e para onde ele vai? Fale um pouco sobre onde você acha que ficam esses lugares, o que existe nesses lugares.

3. Você acha que o eu-lírico faz essa viagem por livre e espontânea vontade? Que motivos você acha que fazem com que ele viaje? Comente.

4. O dia dessa partida marcou a vida do eu-lírico, ou foi um dia como outro qualquer? Retire um trecho da canção que sustente a sua resposta.

5. Que idade você daria, aproximadamente, para o eu-lírico? Justifique sua resposta.

6. O terceiro verso da terceira estrofe traz a afirmação "Minha vó já quase morta", mas não diz por que motivo a avó estaria "quase morta". Levante duas possíveis causas para a avó estar nessa condição.

7. A expressão "o qual", no início da 5° estrofe, se refere a quem?

8. Você acha que a falta de diálogo e de palavras entre os personagens se deve a quê?

9. Qual é a reação do eu-lírico antes e durante a viagem? Comente.

10. No 7° parágrafo, o eu-lírico dá uma atenção especial ao cheiro forte de sua mala. O que essa atitude nos diz sobre o eu-lírico e a situação por que está passando?

11. A avó, a mãe, a irmã e o pai acompanham o eu-lírico até diferentes lugares. Que lugares são esses e como isso reflete a forma de encarar a viagem daquele parente?

12. Observe o trecho:

Minha vó já quase morta,
minha mãe até a porta

Minha irmã até a rua
e até o porto meu pai

O qual não disse palavra
durante todo o caminho

Em todos as orações apresentadas no trecho, temos o sujeito no início da oração. Isso não acontece somente uma vez. Encontre o trecho em que há a inversão e explique qual mudança de sentido ocorreria se não ocorresse tal inversão.

13. O ritmo, os instrumentos e a interpretação do cantor guardam alguma relação com o conteúdo da canção? Explique.

Comentários:

Na questão 1, os elementos para resposta são muito mais discursivos (a reação e a importância que damos a uma mudança permanente) que lingüístico (pois "ir-me embora" é expressão usada tanto para viagens passageiras quanto para mudanças permanentes).

Na questão 2, espera-se que o aluno lance hipóteses sobre os lugares de origem (cidade pequena, meio rural, Norte, Nordeste, interior) e de destino (cidade grande). Convém chamar a atenção que, para a poesia, "capital" não quer dizer necessariamente "capital federal" ou "capital do estado", mas, por metonímia, uma cidade grande.

Na questão 3, podemos supor que o eu-lírico não sabe direito o que o espera, mas sabe, mais ou menos, por que está se mudando: para buscar trabalho e melhores condições de vida, e, com isso, tentar de certa amenizar a condição sofrida sua e/ou de sua família. Talvez a indiferença desse jovem se dê por desconfiar (ou ter elementos formados para isso) de que as condições de vida de um jovem trabalhador, em especial nas suas condições, serão também desfavoráveis na grande cidade.

Observe que todos esses fatos não significam necessariamente que o dia da partida tenha sido insignificante (questão 4). O aluno pode levantar essas hipóteses, a partir de fragmentos isolados da canção ("No dia que eu vim-me embora / não teve nada de mais"). Mas, no conjunto, o dia marcou muito o eu-lírico, tanto é que se dispõs a nos contá-lo; além disso, lembrou-se de detalhes corporais (o fedor da mala, o lugar em que estavam os parentes, a cor das coisas) muito precisos.

O personagem que migra o faz de forma um tanto quanto maquinal: sem saber direito por que o faz. O dia não é encantado, mas pesa na memória.

Convém debater também hipóteses (isso não está explícito e não tem uma resposta única) sobre se a família, ou parte dela, influenciara ou obrigara a mudança do jovem.

Na questão 5, temos a suposição de que o eu-lírico seja um jovem (15, 20, 25 anos). São indícios fortes para isso o fato de ter avó, pai, mãe (e irmã morando em casa). Além disso, sugere-se que esteja em início da idade laboral. Convém chamar a atenção para o fato de que existe trabalho infantil e que, principalmente nas regiões mais precárias, o trabalho começa muito cedo (e isso era ainda mais grave na época da confecção dessa canção).

Questão 6: a reação feminina (irmã e mãe) é bem diferente da reação masculina (pai; mais frio). Isso está marcado inclusive na bela gradação que a música contrói: a avó (morta sabe-se lá se de tristeza ou de doença), a mãe até a porta, a irmã até a rua e o pai, mais forte, até o porto.

A fraqueza da avó, portanto, pode ser por doença (o que reforça o cenário de precariedade que impulsiona a mudança do jovem) ou por tristeza demasiada (uma vez que as mais tristes e temerosas são elencadas primeiro, até chegar ao pai indiferente: avó, mãe, irmã, pai).

A questão 7 é mais de coesão e coerência textual. A expressão "o qual" é uma anáfora (substitui um termo antes dito) que se refere ao "pai". Para perceber isso, o aluno deveria perceber que o pai foi o último elemento citado na estrofe anterior.

A questão 8 ficou propositalmente aberta demais, para dar chance de os alunos
pensarem. Se for o caso, podem ser lançadas algumas pistas:
a) como o momento era de forte emoção, faltaram palavras aos personagens;
b) a vida do lugar onde eles vivem acaba marcando o jeito de ser dos personagens;
c) como o personagem está sendo arrastado pelo "destino", sem saber direito o que espera por ele, a situação provoca uma reação ao mesmo tempo de susto e de indiferença.

A questão 9 se relaciona com a questão 10. A 10 tenta chamar a atenção para o fato de que os aspectos corporais falam muito mais alto que o aspecto meramente espiritual. Como não há alegria, nem tristeza, só silêncio e espanto, o que o eu-lírico "sentia" (7a. estrofe) era o fedor da mala.

Questão 11: Ao silêncio do pai e dos personagens, os aspectos físicos (a mala que cheira mal) vão ganhando destaque; é também um lado simbólico, são símbolos de que aquela migração era pura necessidade, são símbolos de tempos duros, sobretudo no sertão.

A questão 12 envolve gramática e sentido. O verso "e até o porto meu pai" é o único em que o sujeito aparece depois do predicado. Trata-se de oração porque o verbo está oculto ("e até o porto [foi] meu pai").

A inversão se dá porque, na seqüência, a letra continua falando do pai ("o qual não disse palavra"). Caso "pai" viesse antes de "porto" (sujeito no início da oração), "o qual" (pronome masculino singular) não se remeteria mais a "pai" e sim a "porto", que seria o último substantivo masculino no singular.

Além dessa explicação, existem outras: a) questões estilísticas, b) quebrar a monotonia do texto, c) recurso usado no gênero "poema" para dar mais força à expressão...

Questão 13: uma resposta possível é a que aponte para a lentidão do ritmo no início da canção, além de o instrumental (um teclado em string ou estilo "órgão", os acordes secos da guitarra...) e de a impostação de voz do cantor sugerirem um tom de "lamento", coerente com o conteúdo da canção. Momento para se discutir algo próprio do gênero "canção popular": a junção letra-música.

Mas, cuidado... São possibilidades de interpretação. Não quer dizer que as escolhas foram "conscientes", o que não desmente o fato de que elas tenham sido "bem feitas". Em última instância, letra e música guardam certa independência, têm suas lógicas próprias: evitemos, portanto, interpretações forçadas demais.

sábado, 9 de maio de 2009

Iracema Voou (Chico Buarque)





Iracema voou
Para a América
Leva roupa e lã
E anda lépida

Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá

Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico

Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita

Uns dias, afoita
Me liga a cobrar:
- É Iracema da América!

(Chico Buarque. Álbum "As cidades", BMG 1998)


O nome "Iracema" foi um nome inventado por José de Alencar para nomear a personagem índia do romance homônimo (não é um nome autóctone indígena). Para o movimento indigenista, não poderia haver um nome mais representativo dessa terra: "Iracema", além de guardar a dicção do tupi, é "América" ao contrário.

Essa América tupiniquim, na canção de Chico, "invade" a América desenvolvida. A canção trata do tema da migração em busca de trabalho. É um mote para trabalhos escolares envolvendo fluxos migratórios, suas razões e suas expressões nesse tempo de globalização... "Não dá mole pra polícia" e "anda lépida" (sempre em fuga) são trechos que refletem as restrições à entrada de migrantes nos EUA e a condição ilegal de Iracema. Seria a globalização de fato democrática, potencializadora?

Mas convém que também nos atentemos para a canção em si, para a letra, o enredo, sua composição. "Lava chão numa casa de chá": destaca-se a sonoridade "chão" e "chá".

"Lava chão" é um hipônimo para "é faxineira". O narrador guarda empatia para com a personagem, o que nos leva a dizer que "lava chão" não a ofende, mas sim mostra que o narrador é afim à personagem, tão "direto" quanto ela.

Apesar do pragmatismo exploratório de "lavar chão", e apesar de estar desambientada com o clima ("leva roupa e lã"), Iracema parece estar gostando do lugar e tem também pretensões simbólicas no terreno estrangeiro: "ambiciona estudar canto lírico".

A palavra "lépida", proparoxítona, é uma "palavra em fuga", palavra veloz, condizente com a situação clandestina de Iracema. Na poesia, mais do que em qualquer outro lugar, a forma e o ritmo também significam.

É coerente à composição textual que Iracema namore um mímico: ela não domina o idioma inglês e teria encontrado alguém que com ela interaja bem.

O discurso saudosista é questionado; sobre ele há certo deboche: "Tem saudade do Ceará / mas não muita". Nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, mas pra Iracema é melhor estar nos States. O "chão" lavado lá é, na verdade, o mesmo "chão" lavado aqui, mas lá se remunera melhor, em termos absolutos.

Aliás, perceba-se a gradação ao final da canção: sai de um dizer aparentemente saudosista ("Tem saudades do Ceará") para relativizá-lo ("mas não muita") e, por fim, desmenti-lo, no orgulho que Iracema tem necessidade de transmitir a alguém, e o faz por telefone ("É Iracema da América!").

Algumas perguntas escolares:

1. De que lugar Iracema se origina?

R: O aluno pode deixar-se levar pelo último verso: "Iracema da América". Nesse caso, a preposição+artigo "da" não se refere à "origem de nascimento" e sim a uma "origem de onde se fala" (local de onde fala). Para responder à questão, o aluno deveria supor que, se Iracema tem "saudade do Ceará", é porque deve ter vindo de lá.

2. De acordo com a canção, a que se refere o termo "América"?

Na resposta 1, seria incorreto pensar que, se Iracema veio do Ceará, ela se origina da América, pois o Ceará integra a América. Na canção, "América" é uma metonímia para "Estados Unidos da América", o que, inclusive, pode até ser associado a uma tão falada prepotência imperialista estadunidense.

Ótima oportunidade para pensarmos que os sentidos não são estáticos. Podem ser refeitos pelo texto. Em outro contexto, "América" pode significar "continente americano", mas esse não foi o uso na canção.

3. A que lugar faz referência o termo "lá" (4a estrofe)?

R.: América.

4. Qual o trabalho exercido por Iracema? Como você identifica esse tipo de trabalho e o processo de migração de pessoas?

R: Trabalho de "Lavar chão"; faxineira. É visto como um trabalho não qualificado. Em geral, os migrantes de países periféricos exercem esse tipo de trabalho nos países centrais.

5. Com qual pessoa Iracema mantém maior relação afetiva? Relacione o ofício dessa pessoa com uma informação que é dada na segunda estrofe.

R: Com um mímico. Na segunda estrofe, é dito que ela "Não domina o idioma inglês". A mímica é um tipo de linguagem que facilitaria a interação de Iracema com essa outra pessoa; talvez disso decorra a empatia de Iracema para com o rapaz.

6. Como o termo "lépida" se relaciona com o verso "Não dá mole pra polícia"? Explique também o sentido deste verso.

R: "Lépida" quer dizer "ligeira". Ver, mais abaixo, nosso comentário sobre a sonoridade também escorregadia dessa proparoxítona. A situação de Iracema é, provavelmente, de trabalhadora clandestina (o professor deve comentar a migração à procura de trabalho e como razões econômicas justificam o comportamento xenófobo).

7. Observe o trecho do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias (1847):

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar –sozinho, à noite–
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


A penútima estrofe da canção guarda forte relação de intertextualidade com o trecho do poema acima. Diga se a posição de Iracema questiona ou reafirma a posição do eu-lírico do poema de Gonçalves Dias. Comente.

R: Os dois textos se contrapõem. O nacionalismo do poema se contrapõe com certo pragmatismo de Iracema. No fundo, há também as visões dos dois poetas: a visão nacionalista de Gonçalves Dias e a visão "modernista" e crítica de Chico Buarque, mais preocupado em trazer questões relacionadas ao mundo do trabalho. Para importante camada da intelectualidade brasileira contemporânea, uma visão nacionalista seria ingênua depois da experiência nacionalista da ditadura e depois das críticas sociológicas de que, na verdade, temos muitos "brasis".

8. Sem recorrer ao dicionário, que sentido você daria, pelo contexto, à palavra "afoita"?

R.: Iracema tem urgência em falar, e com orgulhosa, que está nos EUA. Há, subentendido, o discurso de que tudo o que é dos EUA é importante; discurso ao qual Iracema se filia. Ótima oportunidade para separarmos personagem e autor: provavelmente não é essa a posição de Chico Buarque, que está muito mais preocupado em relatar uma situação e um comportamento que julgá-lo. Buarque "deixa" Iracema falar.

9. De quem é a voz que nos fala no último verso do poema? É a mesma voz que fala nos outros versos? Explique.

R: É Iracema quem fala. O "narrador" nos anuncia que Iracema faz uma ligação. "É alguém de algum lugar" ("É Iracema da América") é um tipo de construção cristalizada, que nos traz a memória de uma conversa telefônica.

Além disso, há os marcadores ":" e "-", que indicam a transição para o discurso direto.

10. Onde Iracema está ao fazer a ligação e onde está o destinatário do seu telefonema?

R.: Iracema está na América (EUA). Chamar atenção para o "da" (origem) em "É Iracema da América". A preposição "de" é, nesse caso, uma palavra de conteúdo (isto é, uma palavra com sentido, pois dá idéia de lugar) e não uma mera palavra de função (como ocorre em outras ocorrências de "de").

11. Há quanto tempo você acha que Iracema está no lugar de onde ela faz a ligação telefônica? Transcreva um ou mais versos da canção que fundamentem sua resposta.

R.: Provavelmente há pouco tempo. "Não domina o idioma inglês".

12. O fato de Iracema ligar a cobrar nos diz o que sobre ela?

R.: Discutir a condição econômica de Iracema e dos migrantes em geral.

13. Diga uma figura de linguagem presente no verso "Lava chão numa casa de chá". Indique um outro verso em que o mesmo fenômeno ocorra.

R.: Aliteração (chão, chá), isto é, sons parecido dentro de uma mesma frase. Outros casos: o domina o idioma inglês (aliteração de ã, n, m, d).

14. Quanto tempo você acha que Iracema pretende ficar no lugar em que está? Transcreva um verso ou um trecho que justifique sua resposta.

R.: Para sempre, ou pelo menos um tempo grande (relatar o fato de que muitos migrantes vão para países centrais para poupar e depois regressar ao país de origem). "Se puder, vai ficando por lá / Tem saudade do Ceará / Mas não muita". Pode-se relatar, também, sua ambição em estudar canto lírico e seu orgulho de estar onde está ("me liga afoita").

15. O texto deixa implícito que um fator pode impedir que Iracema fique muito tempo no lugar em que ela está no momento da canção. Que fator é esse?

R.: Iracema pode ser deportada, por sua situação de estrangeira clandestina. Essa ameaça é representada, na canção, pela polícia.

16. O nome de Iracema forma um anagrama com outra palavra da canção. Que palavra é essa?

R.: IRACEMA - AMÉRICA. Anagrama é uma permutação (troca envolvendo todos os elementos) de letras.

17. Associe cada preposição das frases abaixo com um sentido:
1. Voou para a América.
2. Roupa de lã.
3. Com um mímico.
4. Iracema da América.

( ) local de onde se fala
( ) companhia
( ) movimento
( ) material de que é feito

R.: 4, 3, 1, 2.

P.S.: Bonito esse verso: "Lava chão numa casa de chá". Não é mero joguinho de palavras chão / chá. Há muita significação. "Chão" é palavra mais dura, pesada, é o ponto de vista da faxineira; já o "chá" é palavra leve, alegre, é o ponto de vista dos clientes do lugar.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

“Cadernos Judiados”, novo livro de poemas de Getulio Cardozo

Quem lê os “Cadernos Judiados” de Getulio Cardozo (lançados em abril de 2009 em Mococa) se depara com algumas imagens fixas, presentes em vários poemas: a mãe, o pai, os postes, os cachorros, as ruas, as pedras, os muros. Deus e o Diabo também estão presentes, mas sem a carga religiosa que normalmente se lhes atribui. Aliás, os poemas do livro trazem sempre uma visão deslocada, surpreendente, da parte de um eu-lírico que parece perpassar a maior parte dos poemas. “Porei na rua o meu hospício”, anuncia-nos o eu-lírico; mas esse “hospício”, essa “loucura” tem suas regras e sua ordem interna, representada na coerência dos temas, do ritmo e do tom.

A voz desse eu-lírico parece fugir da fácil caracterização, do esteriótipo. Parece vir de lugar-nenhum, um lugar próprio entre o rural e o urbano (como a goma de mascar que é “ruminada” em “Goma de mascar”), o natural e o artifício (“mão como a haste de uma flor / e o que exalou de rosa e frasco”), a resignação e a revolta, a dúvida e a certeza. Pode ser apenas delírio, ou pode ser que o poema consiga atingir o global: “Medi com um aparelho de precisão / e por isso ouso afirmar / que estamos algumas semanas / do Sistema Financeiro Mundial”.

Algum poder sísmico deve ter essa palavra, algum incômodo ainda que singelo deve representar essa voz que se contrapõe ao senso comum, ao discurso dominante; essa postura de recusa está figurada como um “olhar azedo”, olhar que representa uma fotografia do interior e, ao mesmo tempo, uma ofensa ao estado atual das coisas: “Por que / não sei, mas está escrito / em letreiros, nos mistérios / da nossa fé, nos panfletos / no meu olhar azedo”. A dificuldade de racionalizar a perceptível crueza do presente se amolda a uma característica da poesia, que é a de dizer por metáforas, a de dizer aos poucos; ao mesmo tempo, pesa ao poeta a obrigação de dizer o mundo (ou mais que dizer o mundo: dizer para superá-lo), como se lê nos versos “O que diremos aos que chegam / na porta de nossa casa? / Aos mortos acompanhados dos lobos?”. Na dificuldade de dizer, o simples ato de ser e de colocar seu corpo no caminho já é significativo, como se lê no poema “O protesto somos nós”.

O eu-lírico, principalmente na primeira parte do livro, não entende direito a complexidade da opressão do mundo novo, mas suspeita de que algo não vai bem: “Na lua refletida do poço a placa / indica onde fica o mundo / e o que caminha em volta / não é o tigre, nem areia / que se move”.. Seus poemas são suspeitas, são hematomas em princípio de revolta, que talvez possam começar a ganhar forma quando escritos: “Que [o Pavão] estenda seu reino até as fezes dos comandantes, / que acorde o ar estragado da cidade”. O poema não é o resultado de idéias prontas, mas de idéias em processo. Lê-se esse primórdio de revolta no belo “Salmo”: “Alimento esse tigre a toda hora / com a pólvora dos dias, / com a lã de minhas noites, / com os galos nos dedos da aurora”.

A vida passada vai se esmaecendo pela ação do tempo. O poema é luta sem alarde contra o “fim da história”. É luta contra o fim do passado, por trazer lances desorganizados de memória (“O furgão levou muita gente com terra. / Levou metade da montanha / que meu pai mediu com a mão”). Se o tempo come a “fruta” (a memória), o ruído dessa ação evita exatamente que a fruta seja esquecida e deve ser denunciado: “Queda de uma pedra, / o tempo comendo a fruta. / É o ruído que passa por mim, / alimentando mais uma idéia”.

O passado não é buscado pelo saudosismo; o passado é objeto interditado pelo tempo e pelo presente torpe. Ao tentar o passado, o eu-lírico afirma sua identidade e recusa a homogeneização do presente, o que se lê nos versos: “Crescemos e amaldiçoamos o mundo. / As ruas talvez sejam procura da infância”. No poema “Nem me lembro quantos são”, o aparente saudosismo da lembrança de nomes de pessoas é rompido pelo sutil humor dos últimos versos: “Tive uma cachorra / que nem consta lá”. A tentativa do passado é, assim, luta contra o fim da vida presente, vida esmagada, de acordo com o livro, pelo capitalismo, em especial o capitalismo financeiro. O resmungo silencioso do poeta é a resposta “à altura” à opressão também dissimulada desses nossos dias “democráticos” e “pacíficos”, que, exatamente por sua dissimulação, mostram-se-nos muito mais cruéis.

Na parte final do livro, algumas pequenas certezas parece se colocarem ao eu-lírico (já seria um outro eu-lírico?), que passa a adotar um diálogo mais cosmopolita, ao afirmar a necessidade de transformações e revoluções sociais, recusando o fim das ideologias, recusando o fim do futuro. Se não há saudosismo, não há também esperança ingênua no futuro (“Amanhã? Uso máscara protetora / ao me aproximar dessa palavra”) e sim o reconhecimento da árdua tarefa de superar o cenário atual: “Nada é benigno, tudo é pedra / e não adianta falar com sua porta,/ convencer seu cachorro”.

A memória falha provoca uma fragmentação textual e de imagens, que, bem tratada pelo autor, fortalece a poesia, esse gênero entrecortado. Muitas vezes a fragmentação é usada para quebrar a grandeza do poema, ou melhor, para dizer que o poema, para ser grande, deve recusar a eloquência (por isso o livro é lição a muitos aprendizes). No poema “Venda em curva de estrada”, o ápice do poema é quebrado pelo berro de um jogador de truco: “Apenas o silêncio numa noite pura, / o clarão do fósforo mostrando / a dor mais embaixo // - Nove! Gritou o negro / ao sinal do diabo”. O grito do presente acorda o poema, que ao ver do eu-lírico não pode ser um refúgio seguro, um jardim suspenso sobre o presente. Outra forma de quebra é levada a cabo no poema “Dizeres na parede da Caverna”; qualquer pretensão de “profundo ensinamento” dos dois primeiros versos é desbancada pela elevação do figurante (menino) ao primeiro plano do poema: “Os rabiscos esquecidos que o olhar / deixa nas paredes da caverna.// O menino empurrando a carroça / nunca mencionado na fábula”. No trecho antes mencionado, vê-se a empatia do eu-lírico (e a visão aguda do poeta) em relação à margem, ao marginalizado.

Judiados (uso esse termo com o perdão dos etimologistas, para quem o sentido está no DNA da palavra) os poemas devem ser: escritos e reescritos, até fugirem do monótono discurso dominante; temos o produto dessa labuta nessa obra de maturidade de Getulio Cardozo. Mas judiada não pode ser a vida: e por isso ler esses “Cadernos” é uma fuga necessária para se identificar e transfigurar pequenos lances do massacre nosso de cada dia.

por Paulo J. Vieira, texto publicado no Jornal "A Mococa", 16/05/2009.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Recursos Concurso FGV 2008 - Prefeitura de Campinas

As primeiras 15 questões (Conhecimentos Gerais) são comuns a todas as provas da tarde. Desculpem-me pela linguagem formal demais; é que esses recursos foram de fato enviados para a banca organizadora.


Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Língua Portuguesa. Questão: 10 – Anulação da questão.

10. Assinale a alternativa em que tenha havido uma troca da palavra correta por outra provocando inadequação de sentido na frase.
(A) Como queria que ninguém me visse, fiz de tudo para passar desapercebido pela multidão.
(B) Tomei aquela atitude por descargo de consciência.
(C) Tive de reabastecer minha despensa.
(D) Amanhã haverá mais uma sessão de imprensa para avaliar o filme a ser lançado brevemente.
(E) Receberemos uma quantia vultosa por aquele simples serviço.

Gabarito inicial e final: A. A banca não acatou os recursos.


O gabarito inicial aponta que a palavra “desapercebido” em “Como queria que ninguém me visse, fiz tudo para passar desapercebido pela multidão”. A sugestão da banca era que o termo em tela deveria ser substituído por “despercebido”.

Observando o conceituado “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” (www.houaiss.uol.com.br), temos as seguintes acepções da palavra “desapercebido”:

“desapercebido
Datação
sXV cf. IVPM
Acepções:
■ adjetivo
1 que não está preparado; sem munições, provisões; desaparelhado, desmunido
Ex.: exército d.
2 (sXVIII)
que está fora de sua guarda; desacautelado, descuidado, desprevenido
Ex.: viu-a d. e roubou-lhe a bolsa
3 não percebido, de que não se tem conhecimento, não observado; despercebido
Ex.: evolução d. aos cientistas
4 que não se sentiu; despercebido
Ex.: picada d.” (grifo meu)

Esta douta banca provavelmente tenha considerado apenas a acepção 1 acima, por sinal, a mais usual. Porém, conforme a acepção 3, o período apresentado pela alternativa A está perfeitamente correto.

Como não há “alternativa em que tenha havido uma troca de palavra correta por outra provocando inadequação de sentido na frase” (assim pedia o enunciado da questão), proponho que esta douta banca proceda à anulação da questão.


Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Conhecimentos Gerais. Questão: 14 – Anulação da questão.

14. O movimento da década de 30, no Brasil, implementado por educadores como Anísio Teixeira e Lourenço Filho, de extrema importância para a formação do pensamento pedagógico no Brasil, ficou conhecido como:

(A) Educação para Todos.
(B) Movimento Pioneiro Escolanovista.
(C) Campanha Nacional para uma Educação de Qualidade.
(D) Movimento por uma Educação Popular.
(E) Otimismo Pedagógico.

Gabarito inicial: E. Gabarito final: B. A banca acatou os recursos.


A nosso ver, a questão cometeu um equívoco, que em muito prejudicou os candidatos que possuem uma visão geral sobre a história da educação no Brasil. Por considerarmos que tal questão (de tipo objetiva) apresenta duas alternativas igualmente válidas, solicitamos que esta douta banca avalie, em favor do máximo interesse público, a anulação da questão.

Anísio Teixeira e Lourenço Filho encabeçaram um movimento por mudanças do paradigma educacional, movimento que ficou marcado pelo Manifesto da Escola Nova (em 1932). Assim, a alternativa B está correta, porque era de fato um “Movimento”, e seus protagonistas eram denominados de “pioneiros da Escola Nova”. Esse movimento se agrupou em torno do “Manifesto Pioneiro da Escola Nova”, sendo, por isso, muits vezes chamado de Movimento Pioneiro da Escola Nova.

A banca deve ter pretendido identificar o nome exato do Movimento. Apesar de não concordarmos com esse tipo de preocupação (muito pontual e que prejudica os candidatos com uma visão mais sistemática), este recurso não pretende perquirir esse mérito, mas sim conservar-se no exame da incorreção do gabarito inicial.

Ora, se de fato a banca considerava que tal movimento não se chamava “Movimento Pioneiro Escolanovista”, a banca deve supor que haja um nome inequívoco para esse Movimento, pois somente por esse raciocínio poderíamos dizer que a alternativa B é incorreta.

Porém, a questão da nomenclatura de movimentos é, tradicionalmente, um tanto quanto fluida. E assim se dá também quanto ao movimento em análise.

Uma pesquisa no Google pela expressão “Movimento Otimismo Pedagógico” somente retornou duas ocorrências, o que indica a imprecisão, também, desta expressão. De modo que a precisão que a banca julgou haver para descaracterizar a alternativa B não parece existir em relação ao referido Movimento, que é nomeado por formas várias em trabalhos acadêmicos.

Sabemos que, por uma relação metonímica, muitos movimentos acabam absorvendo o nome de seus manifestos. Assim ocorreu com os movimentos vanguardistas de arte e política no início do século, conhecidos por seus respectivos manifestos (nesse sentido, ver TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1990, Introdução).

Exatamente pelo fato de o Manifesto ter se chamado “Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova” (1932; ver, por exemplo: http://pt.shvoong.com/social-sciences/education/1709158-manifesto-dos-pioneiros-da-escola/), é possível dizer, se abrirmos mão de um preciosismo que parece não ser pertinente ao caso (que se refere a um Movimento de nomeação vária), que o manifesto sintetiza um Movimento dos Pioneiros da Escola Nova (como afirma a alternativa B).

Considerando, assim, que a denominação “Otimismo Pedagógico” ou “Pioneiros da Escola Nova” são igualmente aplicáveis e buscam caracterizar as mesmas bandeiras, de um mesmo conjunto de intelectuais, em um mesmo período histórico, requeremos a esta douta banca que analise a justeza da anulação da questão, uma vez que duas das cinco alternativas são igualmente válidas para se denominar o Movimento encabeçado por Anísio Teixeira e Lourenço Filho.

Ainda que a nomenclatura do Movimento possa não estar apresentado da maneira mais precisa (e buscamos apontar que tal precisão é injustificável para o caso), a alternativa B também atender, vis a vis, o enunciado da questão.

Apresento abaixo o texto da entrada “Escola Nova” na Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_Nova), que destaca a participação dos dois referidos protagonistas no movimento em favor da Escola Nova durante a década de 30. Era exatamente o que solicitava o enunciado da questão.

O movimento chamado Escola nova esboçou-se, na década de 1920, no Brasil.

O mundo vivia, à época, um momento de crescimento industrial e de expansão urbana e, nesse contexto, um grupo de intelectuais brasileiros sentiu necessidade de preparar o país para acompanhar esse desenvolvimento. A educação era por eles percebida como o elemento-chave para promover a remodelação requerida.

Inspirados nas idéias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação.

Denominado de Escola Nova, o movimento ganhou impulso na década de 1930, após a divulgação do Manifesto da Escola Nova (1932). Nesse documento, defendia-se a universalização da escola pública, laica e gratuita. Entre os seus signatários, destacavam-se os nomes de:

* Anisio Teixeira - futuro mentor de duas universidades no país - a Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, desmembrada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas - e a Universidade de Brasília, da qual era reitor, quando do Golpe Militar de 1964. Além dessas realizações, Anísio foi o fundador da Escola Parque, em Salvador (1950), instituição que posteriormente inspiraria o modelo dos Centros Integrados de Educação Pública - CIEPs, no Rio de Janeiro, na década de 1980.
* Fernando de Azevedo (1894-1974) - que aplicou a Sociologia da Educação e reformou o ensino em São Paulo na década de 1930
* Lourenço Filho (1897-1970) - professor
* Cecília Meireles (1901-1964) - professora e escritora

A atuação destes pioneiros se estendeu pelas décadas seguintes sob fortes críticas dos defensores do ensino privado e religioso. As suas idéias e práticas influenciaram uma nova geração de educadores como:

* Darcy Ribeiro (1922-1997); e
* Florestan Fernandes (1920-1995).

Por considerarmos que tal questão (de tipo objetiva) apresenta duas alternativas igualmente aceitáveis, solicitamos que esta douta banca avalie, em favor do máximo interesse público, a anulação da questão.


Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Conhecimentos Específicos. Questão: 16 – Mudança de gabarito.


16.
“Em nenhum lugar se formula explicitamente uma tese sobre as línguas, alguma hipótese sobre o que teria sido uma língua sem essas características, ou o que é mesmo – se é que seria possível – uma língua expurgada de palavras ou expressões preconceituosas. Às vezes, parece que do movimento deveria emergir uma vaga língua ‘originária’ (que a etimologia recuperaria), ou uma língua em que palavras são substituídas por descrições. Mas nada é claro, nenhuma tese é
explicitada.” (L.15-23)

A respeito do trecho acima, analise as afirmativas a seguir:

I. O vocábulo “originária” apresenta a mesma base de sentido que “oriental”.
II. A informação entre parênteses se refere ao sentido de “originária” como “aquilo que se levanta”, reforçando o sentido de “emergir”.
III. A informação entre travessões e a entre parênteses apresentam o mesmo plano de produção de sentidos: o nível metalingüístico.

Assinale:
(A) se apenas as afirmativas I e II estiverem corretas.
(B) se apenas as afirmativas I e III estiverem corretas.
(C) se apenas as afirmativas II e III estiverem corretas.
(D) se nenhuma afirmativa estiver correta.
(E) se todas as afirmativas estiverem corretas.

Gabarito inicial e final: C. A banca não acatou os recursos.

Parece-me que esta douta banca equivocou-se na escolha do gabarito desta questão.

A banca considera que os itens II e III estão corretos, quando, na verdade, estão flagrantemente equivocados.

A melhor resposta para a questão é a alternativa D, que considera que nenhuma afirmativa está correta. Vejamos.

Na II, a questão diz: “a informação entre parênteses se refere ao sentido de ‘originária’ como ‘aquilo que se levanta’, reforçando o sentido de emergir”.

Na verdade, o texto diz que, supostamente, “do movimento deveria emergir uma língua ‘originária’ (que a etimologia recuperaria)”. A informação entre parênteses claramente refere-se a “originária”, não a “emergir”. “Emergir” sim pode ser entendido como “aquilo que se levanta”, mas não “originária” (que é a língua “que a etimologia recuperaria”).

Ademais, pelo sentido do texto, a língua originária não é “aquilo que se levanta”, como diz o item II, porque isso reforça uma idéia de “atividade” (ação) que o autor não quis imprimir em seu texto. Na verdade, o que o autor diz é que um pressuposto do politicamente correto é que, se retirarmos as expressões ‘preconceituosas’, restará uma língua originária, que seria pura e neutra. Essa é a tese central do trecho, e do texto também.

Portanto, a língua originária emerge não porque “se levanta” (como diz a questão), mas porque as expressões ‘excedentes’ são excluídas. Para usar de uma metáfora, a língua originária não emerge porque se movimenta do fundo para a superfície de um rio, mas porque o rio foi se enxugando.

Como o item III está flagrantemente incorreto, a explicação acima (perfeitamente aceitável e adequada) era a única possível de se identificar para que se pudesse obter um gabarito possível, pois, estando a I e a III evidentemente equivocadas, todas deveriam estar, pois não havia alternativa que contemplasse apenas o item II como correto. Além disso, cremos ter apresentado justificativas por demais suficientes para que o item II seja considerado equivocado.

Vejamos, pois, o item III.

Esse item afirma que “as informações entre travessões e a entre parêntese apresentam o mesmo plano de produção de sentidos: o metalingüístico”.

Ora, metalinguagem é, em suma, usar a linguagem para explicar a própria linguagem. O exemplo mais repetido é o do dicionário: uma palavra explica a outra.

Roman Jakobson, em clássico texto que configura as funções da linguagem e que é fonte para o reconhecimento da metalinguagem, afirma que o foco em um dos elementos de uma comunicação realçaria uma das funções da linguagem. Assim, caso o foco da comunicação estivesse emissor, a função seria emotiva; no receptor, conativa ou apelativa; no referente, a função seria referencial; na mensagem, a função seria poética; no canal, a função seria fática; no código, a função seria metalingüística.

Ora, a banca desconsiderou a abordagem clássica e, até hoje, mais utilizada na identificação da função metalingüística, que nada mais é que usar o código (a língua portuguesa, no caso) para explicar o próprio código.

Vejamos, pois, tal definição, nas palavras do próprio autor:

A função metalingüística

Uma distinção foi feita, na Lógica moderna, entre dois níveis de linguagem, a "linguagem-objeto", que fala de objetos, e a "metalinguagem", que fala da linguagem. Mas a metalinguagem não é apenas um instrumento científico necessário, utilizado pelos lógicos e pelos lingüistas; desempenha também papel importante em nossa linguagem cotidiana. Como o Jourdain de Molière, que usava a prosa sem o saber, praticamos a metalinguagem sem nos dar conta do caráter metalingüístico de nossas operações. Sempre que o remetente e/ou o destinatário têm necessidade de verificar se estão usando o mesmo código, o discurso focaliza o CÓDIGO; desempenha uma função METALINGÜíSTICA (isto é, de glosa). (Roman Jakobson. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 2005, p. 127).

Vejamos, agora, o texto analisado pela questão da prova objetiva:

“Em nenhum lugar se formula explicitamente uma tese sobre as línguas, alguma hipótese sobre o que teria sido uma língua sem essas características, ou o que é mesmo – se é que seria possível – uma língua expurgada de palavras ou expressões
preconceituosas. Às vezes, parece que do movimento deveria emergir uma vaga língua ‘originária’ (que a etimologia recuperaria), ou uma língua em que palavras são substituídas por descrições. Mas nada é claro, nenhuma tese é explicitada.” (grifos nossos)

A função metalingüística ocorre, no texto em análise, na informação entre parênteses (explica “originária”; ou seja, o código se volta ao próprio código), mas não ocorre no trecho entre travessões, subsequente a “mesmo” (que traz um dado novo).

O trecho entre travessões é, na verdade, um comentário do autor a respeito da frase, a saber, uma apreciação do autor; nas palavras de Jakobson, neste caso estamos diante de uma “linguagem-objeto”. É, portanto, um dado novo (nas palavras de Koch, goza de informatividade, ou seja, de novidade), não uma volta metalingüística em relação a uma informação já dita.

Estando, assim, não apenas o item I equivocado, como também o II e o III, pedimos vênia a estão renomada banca para discordarmos do gabarito inicial e propormos, em nome do maior interesse público, a alteração de gabarito da letra C para a D.


Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Conhecimentos Específicos. Questão: 29 – Mudança de gabarito.

29. Na pergunta da Fernanda [o texto não foi citado neste "blog" porque não era relevante para responder a questão], construções como “pra mim seguir em frente” e “namoraria comigo” devem ser trabalhadas pelo professor de Língua Portuguesa como:
(A) erros imperdoáveis.
(B) traços típicos da oralidade, aceitos num universo coloquial frouxo.
(C) formas que acabam sendo vistas com discriminação pela sociedade por não se adequarem à língua culta.
(D) formas aceitáveis, uma vez que a escola deve promover a libertação das amarras gramaticais.
(E) formas naturais entre jovens que deixam de aparecer na vida adulta, pois são facilmente corrigidas pela escola.

Gabarito inicial e final: C. A banca não acatou os recursos.

A banca considerou correta a afirmação de que as expressões “namoraria comigo” e “pra mim seguir em frente” são “formas que acabam sendo vistas com discriminação pela sociedade por não se adequarem à língua culta” (grifo nosso).

Há um evidente equívoco nesta afirmação. Vamos separá-la em duas partes:
1) são formas que não se adequam à língua culta
2) são formas que acabam sendo vistas com discriminação pela sociedade.

Quanto à primeira, podemos, a priori, aceitá-la, se entendermos que a banca adotou a perspectiva da gramática prescritiva mais conservadora, para quem a regência de “namorar” é “namorar alguém” e para quem é inadequado o uso do pronome oblíquo na função de sujeito.

O problema maior reside na segunda afirmativa (a que, no desmembramento que propusemos, chamamos de “2”) trazida pela alternativa C. Definitivamente, as duas formas não são vistas com discriminação pela sociedade, mas sim pelos gramáticos mais tradicionais. Tanto é que a grande maioria das pessoas aceita a regência “namorar com”; tanto aceitam que praticamente desconhecem a regência “namorar alguém”, no sentido de “manter uma relação amorosa”. O mesmo em relação à expressão “pra mim seguir em frente”.

Muitos gramáticos e lingüístas (mesmo os que dizem que a construção é equivocada) reconhecem que o uso de “namorar com” é muito difundido na oralidade e aceito pela maioria da sociedade. Ora, se o uso é amplo na sociedade, como dizer que esta sociedade discrimina esse uso? E, pior, como dizer que discrimina esse uso em qual seja o contexto, como pressupõe a alternativa dada inicialmente como certa pela banca?

Vejamos, por exemplo, o que diz o lingüista Sírio Possenti (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1768373-EI8425,00-Outra+nota+sobre+a+regencia+de+namorar.html):

“Se a escola não trabalhasse pela manutenção de estruturas mais conservadoras, "namorar", no sentido de 'ter uma relação amorosa', tenderia a ser (preferencialmente) "namorar com". E, no sentido de 'estar interessado', seria sempre, invariavelmente, como já é, namorar o/a. Não é o que as gramáticas dizem que ocorre (ou deveria ocorrer) com visar e assistir, por exemplo?”

Além do mais, ainda que entendamos “sociedade” como “sociedade letrada”, ou como “alta sociedade”, ou como “gramáticos” ou “lingüístas”, veríamos que há vários exemplos, além do supra-citado de Sírio Possenti, de estudiosos que reconhecem não só o uso reiterado como também a validade e correção do uso de “namorar com”.

Vide, por exemplo, o que diz a acepção 2 da entrada “namorar” do reputado Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (www.houaiss.uol.com.br):

“namorar
Acepções
■ verbo
(...)
2 flertar, namoriscar
Ex.: a estrela cinematográfica namorou (com) o playboy só para efeito de publicidade (...)” (grifo nosso).


Portanto, a alternativa C está em evidente descompasso não só em relação às teorias lingüísticas mais razoáveis, como também em relação a uma evidência empírica inegável: a de que os falantes de português do Brasil (em suma, a sociedade) não associam uma valoração negativa a construções como “namorar com” (se a questão dissesse que os gramáticos mais conservadores o fazem, a afirmativa seria aceitável).

A resposta correta da questão é a alternativa B.

Se entendermos a palvra "frouxo" no sentido de "não rígido" (sem valor pejorativo, portanto), é plenamente correto dizer que os textos de internet trazidos pela questão devem ser destacados, pelo professor, como detentor de “traços típicos da oralidade, aceitos num universo coloquial frouxo” (isto é, em um universo coloquial com grau mínimo de formalidade).

Marcos Bagno defende essa idéia (Preconceito lingüístico - o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999), ao afirmar que dadas situações mais ou menos formais regulam o registro lingüístico adequado. E que, dentro do registro coloquial, há gradações (ou seja, há uma coloquialidade menos “frouxa” e uma coloquialidade mais “frouxa”).

Uma coloquialidade mais rígida ocorre, por exemplo, em uma conversa informal entre amigos acadêmicos em um ambiente universitário. Uma coloquialidade menos rígida (mais “frouxa”, despido este termo de um sentido pejorativo) seria, por exemplo, na conversa doméstica entre dois irmãos. Tal coloquialidade pode ocorrer não só em relação à oralidade, como também em relação à escrita (por exemplo, em um bilhete doméstico de um irmão a outro).

Não há como negar que houve uma coloquialidade despreocupada (sem sentido pejorativo) na troca de mensagens apresentada pela questão, e que o internetês representa uma vertente coloquial da linguagem escrita. O fato de está coloquialidade ser mais ou menos “frouxa” não prejudica o entendimento da questão, a menos que entendamos que “frouxa” tenha exclusivamente uma conotação negativa, o que está longe de ser verdade:

“frouxo
Datação
sXV cf. FichIVPM

Acepções
■ adjetivo
1 que não está retesado
Ex.: um nó f.
2 que não é apertado; lasso, folgado, solto
Ex.: sapato f.” (Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa)


Portanto, penso serem nítidas a correção da alternativa B e a incorreção da alternativa C, razão pela qual compareço humildemente a esta douta banca para solicitar a alteração de gabarito.


Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Conhecimentos Específicos. Questão: 32 – Mudança de gabarito.

32. A respeito da forma naum na pergunta da Fernanda, é correto afirmar que:
(A) constitui uma grafia mais adequada à pronúncia no português brasileiro.
(B) constitui exemplo de internetês e pode ter sua origem explicada pela ausência do til nos primeiros ambientes da informática.
(C) é forma recente nos meios de bate-papo, surgida no contexto do que socioleto chamado miguxês.
(D) embora aparentemente incorreto, encontra validade no português arcaico, donde advém seu uso largo.
(E) é forma comum na Galícia e de lá se alastrou pelo uso amplo na Internet.

Gabarito inicial e final: B. A banca não acatou os recursos.


Afirmar que a ausência de til em NAUM “constitui exemplo de internetês e pode ter sua origem explicada pela ausência do til nos primeiros ambientes da informática” é de um senso comum invulgar, algo inusual para banca de tão alto calibre.

A banca considerou que a ocorrência de NAUM:

“B) constitui exemplo de internetês e pode ter sua origem explicada pela ausência do til nos primeiros ambientes da informática.”

Dizer que é exemplo do internetês, tudo bem. O problema é a continuidade da resposta.

O trecho final da alternativa B apresenta três sortes de erro:

1) Erro lingüístico:

É senso comum, fora do meio lingüístico, apresentar tal justificativa (a de que NAUM pode reportar-se à ausência de til nos primórdios da informática). Porém, estudos consistentes em “internetês” recusam abertamente tal hipótese, que busca explicar a ausência da acentuação por influência do inglês e da ausência de til nos primórdios da informática.

O fato é que os usuários, principalmente se considerarmos a nova geração deles, desconhecem essa memória, não sendo isso o que determine a ausência do til, e sim questões de praticidade e de marca de pertencimento a um grupo social (se o usuário escreve “NÃO” em uma sala de bate-papo de internet, pode ser indiretamente recriminado).

Pelo viés da gramática gerativa (Chomsky), é incorreto dizer que o português de hoje é o mesmo do de ontem; antes de tal afirmativa, é preciso ver se a estrutura é uma mesma ou se são duas. Pois, na superfície, a língua pode parecer uma só, enquanto que as justificativas geradoras (gerativas) para as frases são distintas.

A contrário senso, percebemos o equívoco de muitos gramáticos ao afirmarem que a ausência do til é um retorno ao português arcaico. Vide texto do gramático Sérgio Nogueira (http://colunas.g1.com.br/portugues/2006/11/01/ola-tudo-bem-9/):
O uso da letra “m” para substituir o til (naum = não) é um retorno às nossas raízes. Para quem não sabe, a origem do til é a letra “n”. Observe duas curiosidades: 1ª) em espanhol, o nosso VERÃO é “verano” e a forma verbal PÕE (do verbo PÔR) é “pone” (do verbo “PONER“); 2ª) o ditongo nasal decrescente /ão/ pode ser grafado “ão” (estão, cantarão) ou “am” (falam, cantaram), conforme a tonicidade.

Ora, parece-nos que, tão equivocado quanto dizer que NAUM tem seu fundamento de validade (“validade”, aqui, em sentido filosófico e não moral) no português arcaico (e a própria questão desprezou essa assertiva, contida no item D) é dizer que a ausência do til tem seu fundamento de validade na ausência desse diacrítico nos primórdios da informática; em ambos os casos, isso nos leva a supor que haveria uma memória ancestral (onde?) mal justificada cientificamente que nos leva às origens, mesmo em casos como o trazido pela questão. Há marcas comportamentais suficientes para supor que os interlocutores do diálogo sejam todos, ou quase todos, adolescentes; se isso é verdade, não seriam esses usuários contemporâneos a um ambiente em que a informática excluísse o til. Essa era a realidade de aplicativos em ambiente MS-DOS, superados desde 1995, com a entrada no mercado do Windows 95; portanto, antes da difusão da Internet e antes, provavelmente, de tais interlocutores terem sido alfabetizados e/ou terem sido adquirido um letramento digital.

2) Erro lógico:

Se é verdade que a ausência do til nos primórdios da informática é algo que pode (que é capaz de) explicar a grafia NAUM, seria também correto dizer que a grafia “encontra validade no português arcaico, donde advém uso largo” (letra D). Há, sim, ocorrência de NAUM no latim vulgar, embora seja difícil precisar se o seu uso era mais ou menos “largo”.

Como para cada questão somente pode haver uma alternativa que atende ao comando daquela, é forçoso reconhecer que a letra B e a letra E ou estão ambas corretas (o que não é possível), ou ambas equivocadas. Como não é possível que ambas estejam corretas, resta ao candidato, tão-somente, descartá-las.

3) Erro histórico:

Em relação à história da informática, quando a internet começou a se difundir no mercado brasileiro (final dos anos 90) o problema do til (apresentado pela alternativa dada inicialmente como gabarito) já não existia mais. Havia sido resolvido pelo Windows 95, inclusive para o seu sistema de arquivos (o sistema Virtual FAT, introduzido pelo Windows 95, passou a permitir a acentuação inclusive para os nomes de arquivos).

Os teclados padrão ABNT (e, depois, ABNT2) datam dessa época: são os dois modelos de teclado usados no Brasil que seguem o padrão QWERTY e apresentam a tecla “ç” e possuem outros diacríticos, como é o til.

* * *

A alternativa A diz que NAUM “constitui uma grafia mais adequada à pronúncia no português brasileiro”. Embora a grafia NAUM não reproduza fidedignamente a transcrição fonética desse vocábulo (e a alternativa não pede essa exatidão), é plenamente aceitável reconhecer que NAUM é mais proximo da pronúncia de /nãun/ que a grafia NÃO.

A alternativa, portanto, que melhor contempla o enunciado da questão é a letra A.


Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Conhecimentos Específicos. Questão: 25 – Anulação da questão.

25. “Curiosamente, é um pouco como reclamar de racismo ou de machismo, na medida em que não há instituições machistas ou racistas que se assumam como tais.” (L.34-36)
A respeito do período acima, analise as afirmativas a seguir:

I. A forma na medida em que é considerada galicismo pelos puristas.
II. Seria mais apropriado semanticamente no texto empregar a expressão à medida que, ao invés de na medida em que.
III. A melhor opção de tempo verbal a ser empregado com o verbo assumir é o presente do indicativo.
Assinale:
(A) se apenas as afirmativas I e II estiverem corretas.
(B) se apenas as afirmativas I e III estiverem corretas.
(C) se apenas as afirmativas II e III estiverem corretas.
(D) se nenhuma afirmativa estiver correta.
(E) se todas as afirmativas estiverem corretas.

Gabarito inicial e final: D. A banca não acatou os recursos.

O gabarito inicial é a letra D, que afirma que nenhum dos três itens apresentados pela questão está correto.

Entendemos que o item III esteja adequado, ao afirmar: “A melhor opção de tempo verbal a ser empregado com o verbo assumir é o presente do indicativo”.

A frase em análise é: “... não há instituições machistas ou racistas que se assumam como tais”.

Ora, o item não diz que a frase original está incorreta; apenas diz que seria “melhor” substituir “assumam” por “assumem”.

A frase do autor é taxativa, não transmitindo idéia de incerteza ou possibilidade para que se justifique o verbo no subjuntivo. O autor é incisivo ao dizer que “não há instituição que se assumem como tais”, o que reforça a idéia de que, ainda que o verbo esteja no subjuntivo, a frase como um todo transmite a idéia de certeza. Ora, se isso é verdade, tão ou mais adequado estaria o emprego do verbo no próprio modo indicativo, que, de acordo com a Gramática Tradicional, é o modo mais condizente com a expressão da certeza.

É correto dizer que em orações subordinadas adverbiais iniciadas em “que” devem ter verbos no subjuntivo. Mas, essa exigência não se opera para a oração subordinada adjetiva restritiva, a qual, como seu próprio nome o diz, qualifica uma expressão da oração principal.

Tanto é que entendemos como perfeitamente aceitável uma frase como: “o livro que acabo de ler é excelente” (os dois verbos no indicativo, inclusive o verbo da oração subordinada).

E, como o autor é taxativo ao afirmar que “não há”, de acordo com os estudos de correlação verbal seria mais adequado utilizar uma forma indicativa para o verbo “assumir”. Essa construção seria uma “melhor opção” em termos de coerência, ainda que a opção original seja igualmente válida.

Atentemo-nos para uma diferenciação trazida pela autora Cláudia Koslowski, em seu “Curso de Português para Concursos”. Observemos as frases propostas pela autora, que, por apresentar uma estrutura similar à da frase proposta pela questão em epígrafe, em muito nos auxilia na compreensão desse fenômeno:

1) Quero um remédio que acaba com minha dor de cabeça.
2) Quero um remédio que acabe com minha dor de cabeça.

Diz a autora que, em 1, o verbo da oração subordinada quer transmitir uma idéia de certeza (indicativo), como se a pessoa quisesse reforçar a urgência do remédio. Em 2, o mesmo verbo quer transmitir a idéia de possibilidade (subjuntivo).

Ora, é exatamente o fenômeno da frase 1 que ocorre no item III apresentado pela questão. Como o autor quer reforçar a idéia de certeza, idéia esta muito coerente não só com o período mas também com todo o texto, parece-nos extremamente correto dizer que a proposta trazida pelo item melhor reflete uma correlação verbal (“há” – “assumem”) e melhor reflete a idéia de certeza que o autor quer passar (lembrando que o item não propõe que a forma original esteja incorreta). É ainda mais forte a idéia de certeza se nos atentarmos para o fato de que o sentido de “não há instituições machistas” transmite uma posição de certeza por parte do autor, que melhor se coadunaria com um verbo correlacionado também no modo indicativo.

“A melhor opção de tempo verbal a ser empregado com o verbo assumir é o presente do indicativo”, afirmativa perfeitamente coerente.

O gabarito inicial prejudica os candidatos que foram competentes para estabelecer tal correlação e que foram competentes para contextualizar gramática e texto, algo muito exigido pelos novos currículos acadêmicos, pelos PCNs e, por isso, algo muito desejável de se identificar em um aspirante a professor. A contrário senso, o gabarito inicial privilegia uma visão descontextualizada de gramática e premia os candidatos mais conservadores ou limitados que tomaram o texto e o autor como “autoridades”, sem se atentarem para uma rede mais complexa entre período, texto e sentido.

Desta forma, propomos a esta douta banca que avalie seu parecer sobre o item III, item que, estando correto, prejudicaria o gabarito e tornaria a questão sem resposta, o que resultaria na anulação da referida questão.

Cargo: Professor Adjunto II (Português – Anos Finais)
Disciplina: Conhecimentos Específicos. Questão: 50 – Mudança de gabarito.

Texto VI: Beatriz

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz

Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ah, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz

Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida
(Chico Buarque e Edu Lobo)

50. A respeito do texto VI, analise as afirmativas a seguir:

I. Todas as ocorrências da palavra se no texto se classificam
como conjunção subordinativa condicional.
II. O texto é rico para trabalhar com os alunos as regras de
acentuação das oxítonas e dos monossílabos tônicos,
assim como as regras especiais.
III. O professor deve ter cuidado ao trabalhar o texto e alertar
para a inadequação de se utilizar, no contexto, o pronome
oblíquo átono iniciando oração.

Assinale:
(A) se apenas as afirmativas I e II estiverem corretas.
(B) se apenas as afirmativas I e III estiverem corretas.
(C) se apenas as afirmativas II e III estiverem corretas.
(D) se nenhuma afirmativa estiver correta.
(E) se todas as afirmativas estiverem corretas.

Gabarito inicial: B. Gabarito final: ANULADA. A banca acatou os recursos, mas deveria ter modificado o gabarito e não anulado a questão.

O gabarito inicial informa que os itens I e III estão corretos (letra B). Porém, a nosso ver, todos os itens (I, II e III) estão incorretos, de modo que o gabarito definitivo deveria ser a alternativa D.

Na I, é dito que “todas as ocorrências da palavra ‘se’ no texto se classificam como conjunção subordinativa condicional”. (grifo nosso)

Na verdade, há uma ocorrência de “se” como conjunção integrante:

“Diz se é perigoso a gente ser feliz”.

Temos um período composto por duas orações: Diz | se é perigoso a gente ser feliz.
Assim, a oração subordinada é substantiva objetiva direta (Diz ISSO). Ora, o “se” ou o “que” em início de oração subordinada substantiva é sempre conjunção integrante.

O “se” enquanto conjunção subordinativa condicional compõe as orações adverbiais condicionais, não as orações subordinadas substantivas.

Nesse sentido, ver FARACO & MOURA (“Gramática”. Editora Ática: SP, 2007):

“Conjunções subordinativas condicionais: Iniciam uma oração que indica condição ou hipótese para que o fato principal se realize ou não.
Conjunções: se, caso, etc.
Ex.: Se você nunca sentiu a sensação de acelerar com o vento batendo em seu rosto, compre correndo. (Quatro rodas)” (grifo nosso). (p.375).

Por sua vez,

“Conjunções integrantes: Iniciam uma oração que exerce função de sujeito, objeto direto, objeto indireto, predicativo, complemento nominal ou aposto de outra oração.
Diferentemente das demais conjunções, as conjunções integrantes não introduzem orações que indicam circunstância.

Conjunções: que, se.

Ex.:
É mito afirmar que não existem personagens complexos em novelas de televisão.
Gostaria de saber se você poderá ir à festa”. (grifo nosso) (idem, ibidem).


Assim sendo, propomos à douta banca que considere como equivocada a afirmação exposta no item I.

Na II, é dito que “o texto é rico para trabalhar com os alunos as regras de acentuação das oxítonas e dos monossílabos tônicos, assim como as regras especiais”.

Como o item I está incorreto (como apresentamos), restou ao candidato avaliar se a II e a III estavam ambas corretas, ou se estavam ambas incorretas, porque não havia alternativa em que constasse apenas um dos dois itens como certos.

O item II está incorreto, conforme afirmou a própria banca, através do gabarito inicial, motivo pelo qual não me deterei em discuti-lo.

O III, por sua vez, está flagramente incorreto (apesar de o gabarito oficial dá-lo como certo), porque usou de um preconceito lingüístico decorrente da gramática normativa e descontextualizada. Lembramos que, no edital, figurava o tema “preconceito lingüístico”, além de outros temas que sugeriam uma gramática mais contextualizada ao uso real e que soubesse diferenciar padrões escritos de orais, o que indicava que o perfil de candidato era aquele que, além de saber gramática, soubesse também criticá-la, a partir dos avanços das ciências lingüísticas (sociolingüística, pragmática, lingüística textual, estudo de gêneros etc.).

Devemos nos atentar para o fato de que o próprio enunciado do item III pede para que o candidato avalie a adequação gramatical no contexto: “O professor deve ter cuidado ao trabalhar o texto [“Beatriz”, de Chico Buarque] e alertar para a inadequação de se utilizar, no contexto, o pronome oblíquo átono iniciando oração”, diz o item III.

O item faz referência a construções sintáticas da canção como “Me ensina ensina a andar com os pés no chão”. Sabemos que a gramática tradicional recrimina o uso de pronome átono em início de oração. Porém, pelo contexto (isto é, da adequação lingüística ao contexto: à situação de produção, ao gênero etc.), o item não está, de forma alguma, errado, por dois motivos:

1) trata-se de uma canção, gênero textual e musical que tem um forte apelo oral;
2) o eu-lírico se dirige a Beatriz; sugere oralidade, apelo emotivo; ou seja, o autor pode estar querendo reproduzir uma construção sintática presente na oralidade e, sobretudo, na oralidade emotiva.
3) No contexto musical, haveria uma quebra melódica em várias ocorrências, se substituíssemos a próclise pela ênclise.

Nesse contexto, seria forçado o uso de ênclise, como pede a gramática tradicional. Assim já nos ensinava Oswald de Andrade no poema “Pronominais”, de uso tão reiterado no meio lingüístico sempre que se queira chamar a atenção de que há variações lingüísticas, de que há registros que são mais adequados que outros; em suma, de que não existe um jeito correto único.

Pronominais (Oswald de Andrade)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Ora, a percepção de Oswald de Andrade é hoje ponto pacífico no meio lingüístico, e já vem sendo, gradativamente, adotado, inclusive, pelos gramáticos mais tradicionais. Esse debate, por ser tão atual nos meios acadêmico e educacional, é, por óbvio, do conhecimento desta tão douta banca, mas ainda assim convém que continuemos desenvolvendo nossa argumentação, em favor de uma maior clareza do que vínhamos expondo.

A respeito do tema, vejamos o que nos diz Marcos Bagno, em obra que é, indiscutivelmente, a de referência sobre o tema “Preconceito Lingüístico”, tema este que, inclusive, figurava no edital do concurso (Preconceito lingüístico - o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999):


Dentro desse conceito de “norma culta”, a proibição de começar um período com pronome oblíquo (Me empreste seu livro) é justificada com a afirmação de que em Portugal (!) ninguém fala assim. De igual modo, a recusa dos gramáticos conservadores em aceitar que em frases como Vende-se casas o pronome se desempenha uma função semelhante à de sujeito se baseia no fato de que, em latim (!!), o pronome se nunca exercia essa função. Dizer ou escrever eu prefiro mais X do que Y é um “pecado”, na opinião deles, porque o prefixo prae- em latim (!!!) funcionava para formar superlativos analíticos, contendo em si mesmo a idéia de “muito” ou “mais do que”... Além disso, é “errado” dizer outra alternativa porque alter em latim (!!!!) já significava “outro”. Mas desde quando nós falamos latim no Brasil? (p.107)


No mesmo texto, Bagno apresenta uma crítica a um gramático que procedeu tal como sugeria o item III da questão, a saber, emitir juízos descontextualizados acerca de (in)correções gramaticais em uma canção popular de Chico Buarque:

Essa mesma idealização da norma culta como um padrão lingüístico 100% “puro” — como uma pedra preciosa sem nenhuma jaça, como uma pepita de ouro livre de toda ganga — se verifica, por exemplo, num texto publicado por Pasquale Cipro Neto em sua página na revista Cult (n° 11, junho de 1998, p. 44). Para ele, os usos não-normativos de onde constituem uma “praga”. E o uso feito por Chico Buarque, numa canção, de onde no lugar de quando indica que o poeta-compositor “caiu na esparrela”.
Lemos no texto de Cipro que “a diferença entre onde e aonde também deixa muita gente de cabelo em pé”. [pg. 110] Depois de explicar o uso “correto” de cada uma das duas formas, ele diz que “mesmo em escritores renomados se
vê o emprego de onde e aonde sem critério”, e cita o exemplo do poema “A onda” de Manuel Bandeira, que escreveu: “Aonde anda a onda”. E chama a atenção para o fato de que “em termos de língua culta, para cada 99 ocorrências corretas de onde, há uma de aonde”. Diante dessa estatística (que ele cita sem indicar a fonte de seus dados nem a metodologia empregada para coletá-los), a lógica nos leva a concluir que o problema então não está na falta de “critério” dos falantes da norma culta, mas sim na concepção que o autor do texto tem de “língua culta”. Afinal, se Chico Buarque, Manuel Bandeira e Machado de Assis (que no poema “Niâni”, parte III, estrofe 2, escreveu:”Mas aonde te vais agora, / Onde vais, esposo meu?”) não servem como exemplos de usuários da “língua culta”, quem servirá?


No volume I da série “Gramática do Português Falado” (Gramática do português falado. Volume I: A ordem. Organização: Ataliba Teixeira de Castilho), temos vários exemplos de como pronomes oblíquos em início de frase são mais usados na oralidade culta (ou seja, por pessoas letradas, que conhecem gramática e que, na escrita, usariam a ênclise nesse caso) que a ênclise pregada pela gramática para a escrita.

Se o item III dissesse que “há incorreção gramatical”, tudo bem. Mas, o item III chama a atenção para o contexto de produção, razão pela qual nos parece incabível que tão douta banca continue a considerar o item como correto (vejamos, mais uma vez, o que dizia o item: “O professor deve ter cuidado ao trabalhar o texto e alertar para a inadequação de se utilizar, no contexto, o pronome oblíquo átono iniciando oração”; grifo nosso).

Além do mais, pelo viés da teoria da literatura a atitude proposta pelo item III também é condenável, porque implicaria destruir a obra, prejudicar seu ritmo, sua melodia, sua coloquialidade etc. Em suma, implica “matar” a obra.

É claro que o professor deve problematizar a questão: apresentar a visão da gramática tradicional, criticá-la, apresentar contextos e gêneros diversos em que a frase tal construção poderia ocorrer (se num requerimento formal, se numa canção, se num diálogo informal etc.). Agora, dizer que “O professor deve ter cuidado ao trabalhar o texto e alertar para a inadequação de se utilizar, no contexto, o pronome átono iniciando oração”, parece-nos ser uma afirmação totalmente incoerente com as novas abordagens metodológicas decorrentes dos principais referenciais teóricos da lingüística contemporânea.

Assim sendo, restando, além do item II, também os itens I e III equivocados, requeiro que esta tão qualificada banca altere o gabarito da letra B para a letra D.