segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Alguns poemas do livro "Um dia depois da natureza" (Paulo José Vieira)

Adanada

A Eva, Deus não fez de barranco:
- Mulher não é Estátua da Liberdade!

Achou-a mais poético da costela de Adão
e se exasperassem pela parte amputada
e se completassem na argamassa de maçã

Vejamos, também é coisa chã vir do barro...
às vezes me resseco e pra não trincar dão-me cápsulas de garoa
às vezes uns coronéis só aceitam me regar em troca de voto
às vezes me perfumo de vinho para dissuadir areia e escarro

Não há tanto mal em ser costela de Adão
A costela é que foi feita da mulher
depois da mulher é que a costela foi a costela

Se Deus fez assim foi para que a costela servisse à poesia
E Deus não deve ser machista, se homem Deus não é:
Deus é também mulher da costela do Nada


Do fetiche

de que vale a moto
sem batizar-se de
outdoor

a moto nunca engraxe
o moço nunca artrite

100cc menor é moto
fora de seu pedestal
ao sal do piche

enquanto desejo
eh astro ou vácuo
caspas nem atritos

arrebita o menino
a moto e o outdoor
mas se um dia a compra
pescoço já rebaixa

a própria moto já se sonha
já se encontra
noutra
fetiche do fetiche


A casa

Papelão na calçada
casaco a cachaça
menos que dorme um cão
que quarto de empregada

Arrebata cômodos
quarto, sala, penico
amada, amigos, urina

Se até a urina corroída
sem urina sem nada

Casaco a cacetada
cada esmero aquece
mais o esmeril esfole

Sem negro sem nada

Na rua dos lobos
por escolha pouca
é ele o zero

nele começa a alcatéia
de raça no leito
raça no peito do muro
seu CPF é o CEP da rua
inscrito no Livro dos Dias

mors ex-pressa

Tanto que sua morte
ainda que por atropelo
é vista sem pisoteio

Tanto que sua morte
ainda que estrebuchada
não sacoleja vara

Espessa é sua morte
somente se mutilada
Não pela humanidade
mas pela lógica devassada:
como assim dividir o nada?

Muito engraçada a casa
sem teto sem nada
por onde a frente fria entra
por onde um sopro escapa


Falcoaria

Falcão artificial
Não extravasa o muro
do quintal, nem do varal
a sua altitude

Crê que um grão mais ouro
se acha em cada espiga
Tem um itinerário cúbico
dentro da bolha de sabão

De unhas mais saúvas
que povoam a atmosfera

Só toma por porto o braço
Direito de seu mestre
com luva

Nesta, guarda o mestre
a obsessão por capturar
(por si ou por falcoarias)
o melhor ar, que até tape
o sopro de seu coração

À noite, colheita
Suas unhas por braços
e a viola por alçapão

Ó, pipa

Quis ele menino te desbicar
na goela de Ella Fitzgerald
Rincão em que o extraordinário
se abrigava quando ar

Tua vontade é duelo de outros
metade vento
metade linha
metade minha


Baldio ou filial

lodos e parafinas
choro entre a cera
em baldias madeiras

verniz desprepara

o sol mitiga, racha
anos adentram

criança entre caibros
não nascida
valoriza o terreno

maior o desuso
retorcido

ninguém nunca neve
more ali, somente acresça

desabrocha uma espinha

desconjunto

armazém das evitações
o império já habita
aquilo a sovaco


Grilo a Priscila

priscila, priscila

o grilo fixo pulveriza
no croqui da boca, estribilho
resquícios de um biscoito fino

priscila, priscila

no muro de casa funciona
uma campainha invertida
me avisa você de partida


Os espantalhos

Meu avô dominava a tecnologia de espantalhos
Fez um que com incenso na boca até tragava
Fez uma fêmea de cabelo de fogo que Nhô Bartô
amou sobre o leito de rúculas

Pensei que meu avô tivesse hortas por pretexto
Demorava-se mais agricultando gentes

Emprestou da biblioteca um Da Vinci
e escondeu na madrugada
(ou na própria Mococa)
essa herança

Não que precisasse dos préstimos humanos
Fazia público por precisão das economias
para mais se matutar no que lhe aprazia demasiado:
Ludibriar passarinho com requintes de crueldade

Quando aturdia que espantalho ia se empenhar nisso
e não ser conviva ou cortina para sala de visitas
meu avô cobrava menos que linhas e panos

Tanta encomenda que um canteiro era de espantalhos
Também havia encomenda de bonecas
gestadas de vestido por espantalha adulta

Meu avô dotava os passarinhos de nossa lógica

Espantalho já era a hortaliça que mais vendia
Um homem comprou de meu avô um maço

Um dos espantalhos tinha passaporte búlgaro
Outro trazia uma conta de luz que por vencer
Outro empinava papagaio e fazia bolhas de sabão
Outro fazia tenção de disparada atrás de folia de reis
Outro parou enxadada no ar em pose para Coimbra
Outro ouviu a história de Carmem e tinha olhar absorto

Nunca houve ali uma hortaliça ultrajada
Pássaros no ninho já medravam nesses deuses

A polícia um dia veio prender o meu avô
Não por formação de milícia contra os pássaros

Dizia-se que ele desesperançava homens e os empregava


Teatro do sétimo dia

O autor (aqui):
Preciso publicar isso em livro
E descansar, sossegar de debruns

Deus (Gn 1: 31):
Vejo que tudo é muito bom

Darwin (A origem das espécies, 1ª parte, § 2):
Deus depois retocou


Luís Antero Echeverría

que cesta diversa
no nome carrega
Luís Antero Echeverría

Cores sem critério
de acerolas a uvas
desmedidos sons
colidem-se frutas

de água e ezeite
de quinjica e poçoca
de zubu e mangau

No seu isopor
tamanho festival
aquarela e bistrô
um peito arsenal

Esgarçando vistas
vizinhas se cogitam
eleitas a visitas

Não só ele a tenha
do peito infinita

cesta das delícias
sem nenhuma cerca
são delícias enxertas

começa no queijo
e lhe arrebenta a nuca
começa na abóbora
e alcança uma grávida
começa na terra
e descansa domingo
começa na estufa
e se desdobra em varal

Por toda a vila
jamais retilíneo
entrega panfletos
de simples frescor

começa na Amanda
dona da quitanda
e acaba na Úrsula
de glote que ulula


Arbitrário

O poço artesiano
ocupa o centro de povoado em seca

Foi sabotado por pimenta
por monturo de unhas aparadas
à bala de fuzil

Nem por isso o fim do mundo
Nem por isso Deus castiga
Nem por isso a rebelião

O mundo não é onomatopéia
(soam o oposto no jogo de espelhos)

A artéria do fazendeiro não será obstruída

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