sexta-feira, 13 de julho de 2007

Trem do Pantanal (Almir Sater)



Enquanto esse velho trem
Atravessa o Pantanal
As estrelas do Cruzeiro
Fazem um sinal

De que esse é o melhor caminho
Pra quem é como eu
Mais um fugitivo da guerra

Enquanto esse velho trem
Atravessa o Pantanal
O povo lá em casa espera
Que eu mande um postal

Dizendo que eu estou muito bem
E vivo
Rumo a Santa Cruz de la Sierra

Enquanto esse velho trem
Atravessa o Pantanal
Só meu coração está
Batendo desigual

Ele agora sabe que o medo
Viaja também
Sobre todos os trilhos da Terra
Rumo a Santa Cruz de la Sierra
Sobre todos os trilhos da Terra

Na postagem sobre a canção "Odeio rodeio", tentei mostrar como o Chico César brinca com o esteriótipo do "sertanojo", esse gênero musical do "sertão" em tempos de cultura de massas. Naquela canção, Chico César não só retoma e desloca idéias do "sertanojo", marcando uma posição contra elas, como também "incorpora" (ou, finge incorporar) um jeito emocionado de ser do enunciador "sertanojo".

Sei que pejorar não é algo muito bom em ciência, mas, quem disse que esse blog quer fazer ciência? Talvez queira, mas não se obriga a amarrar nada. São idéias soltas que podem ganhar substância em outro lugar, em um artigo, meu ou de outrem. Mas, usei "sertanojo" porque eu falava de certa forma junto com uma posição para quem Zezé di Camargo e afins devem ser excluídos do conjunto dos sertanejos. Ou seja, pode existir música sertaneja boa.

Esta do Almir Sater está na categoria sertanejo mesmo. Não que não haja pontos em comum entre o sertanejo e o sertanojo (posso tirar as aspas já, agora que estamos mais íntimos); há uma zona interdiscursiva entre os dois. E não é corriqueiro que os dois se choquem frontalmente. A migração discursiva do segundo não é opositiva mas apropriativa do primeiro; e o primeiro muitas vezes "deixa pra lá" o segundo, ou se enfraqueceu de tal modo, dadas as condições históricas, que já não pode mais falar direito. O leitor pode tentar comparar por si mesmo esses discursos, a partir desta minha rápida análise.

De acordo com Maingueneau (Análise de textos de comunicação), um discurso não é feito só de idéias. Com isso, Maingueneau abre espaço para pensarmos também o discurso para além do texto. Ou, pelo menos, para pensar como idéias textuais (verbais) se associam a outros elementos na constituição de uma semântica global do discurso. Uma semântica global seria regida por princípios simples e pouco numerosos, que, por sua vez, permitiriam a infinidade dos textos possíveis e de outros elementos anexos (e talvez não menos relevantes que aqueles). E um desses "outros elementos" discursivos para além do texto seria o ethos.

Para ficar mais claro, vamos aplicar isso a uma análise desta canção.

As idéias (textualmente expressas) remetem a um discurso (como todo discurso, subjacente) sertanejo: pacificidade, harmonia com os outros, com a família e com a natureza, tranqüilidade rural ("locus amoenus" caipira), sem estresse ou desarranjos psicológicos, sem esperar da vida grandes projetos e sobressaltos, integração com o Cosmos (este Cosmos pode ser a idéia de Deus: religiosidade sertaneja). Se o coração saltita e se o eu-lírico foge, é para buscar uma harmonia ainda mais profunda. Poder-se-ia dizer que, apesar de bonito, este é um discurso um tanto conformista, uma fuga da política, fuga ainda que inconsciente.

Pois bem. Muitas análises de discursos parariam por aí: relacionar idéias textuais a uma coerência discursa, a qual constituiria uma formação. A noção de "ethos" nos leva além.

A noção de "ethos" busca dar conta de entender o caráter e a corporalidade que um texto atribui ao seu enunciador. Se o texto atribui, ou, como veremos, uma semântica global atribui, o enunciador não ajusta seu corpo e seu tom mais eficiente aos seus propósitos, com a consciência que a tradição retórica supunha. O caso desta canção é interessante porque a correlação a um ethos implica muito mais o locutor (Sater) do que os seus autores; várias razões podem ser buscadas para isso, desde o fato de esses autores serem desconhecidos, até o caráter irremediavelmente presencial de todo ethos.

As posições discursivas (idéias) que dissemos anteriormente constituem uma figura de homem tranqüilo, de respiração compassada (a desritimia do coração é uma desritmia "boa"), de jeito despojado, de prazeres simples etc. O tom de voz é também uma manifestação corporal que configura o ethos: aqui, um tom de voz que, apesar da diferenciação da altura melódica (entre médios e agudos), permanece praticamente com o mesmo volume (sem gritos, sem muitos decibéis). O instrumental também reforça essa entonação.

Seria interessante um estudo que investigasse o ethos por trás dos gêneros e dos recursos musicais (veja uma postagem minha sobre uma canção de Raul Seixas e o ethos roqueiro-inconformado). Em grande medida, falar de um estilo de um cantor é identificar-lhe um ethos.

A caracterização física de Almir Sater neste video é coerente com tal ethos sertanejo: o chapéu, a movimentação corporal medida, o sorriso singelo e feliz. Talvez, não seja só uma conseqüência do ethos mas uma parte igualmente constitutiva deste. Mas, mesmo se só ouvíssemos a canção, poderíamos constiuir essa "figura" do enunciador que canta, darmos este caráter a ele, imaginarmos sua postura corporal.

A hipótese é que haveria uma semântica global que "englobaria" tanto as idéias quanto os "outros elementos", no caso, deste discurso sertanejo. Nesta canção, o traço semântico principal é o da "integração". A partir deste traço semântico básico, podemos derivar outras poucas noções intermediárias (prudência, tranqüilidade, pacificidade etc.), que determinariam tanto o que vai ser dito como a globalidade entre o dito e o agido (ethos).

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