domingo, 15 de julho de 2007
As gafes da TV portuguesa
Quem nos pergunta "você sabe que horas são?" não espera que respondamos simplesmente "sim", mas que lhe informemos essa hora que sabemos (ou que buscamos saber para responder). A pragmática buscaria dar conta de entender como os sentidos são completados pela situação imediata em que os interlocutores estão inseridos.
Costuma-se dizer que "português é burro". E já ouvi colegas meus que viajaram a Portugal dizerem que as tolices portuguesas das piadas de fato acontecem, que os portugueses são burros mesmos. Parece que lá em Portugal também fazem piadas sobre as burrices daqui. A questão parece ser, então, de uma interincompreensão, cujas raízes podem ser historicamente buscadas (condições de produção); é claro que não deve ser algo que prejudique irremediavelmente os sentidos, pois uma interincompreensão pode ser superada pelos interlocutores (reformulando suas falas, por exemplo).
Alguns lingüistas já disseram que as piadas de português (e as piadas de brasileiro, lá em Portugal) se sustentam basicamente sobre uma idéia de "burrice", que na verdade não é "burrice" mas saberes pragmáticos diferentes. Afirma-se que os portugueses têm uma tendência a ficarem mais no enunciado explícito e a buscar menos implicitações na situação ou na enunciação.
O vídeo aqui anexado foi editado no Brasil. Em suas escolhas, retrata certa representação que, fanfarrona ou seriamente, boa parte dos brasileiros faz dos portugueses. Vejamos dois trechos desse vídeo:
[Repórter pergunta e senhora responde:]
- O que que a traz cá?
- Uma camionete.
[Repórter pergunta e garotinho responde:]
- Falas com os cavalos?
- Falo.
- E eles respondem?
- Sim.
- O que é que dizem?
- Dizem assim: hiiiiiiiiiiii!
Muitos leitores podem ter a correta idéia: "esses trechos bem que poderiam ser piadas"; ou tirar dessa idéia uma conclusão valorativa mais geral: "nossa, então as piadas de português não são ficções, acontecem, os portugueses são mesmo burros". Será que a senhora e o garotinho foram "burros" por não entenderem a pergunta, ou simplesmente responderam mais "ao pé da letra" o que o enunciado pedia? Se formos pela primeira opção, rimos dos entrevistados (e português seria mesmo burro); se formos pela segunda, rimos do entrevistador (e português seria astuto ao ler o enunciado "ao pé da letra", "juridicamente" poderíamos dizer).
Parece-nos que tanto a senhora quanto o garotinho não estão troçando, zombando dos repórteres: entendem suas respostas como as únicas possíveis, ou as melhores possíveis. Mas, provavelmente, não eram aqueles os sentidos que os repórteres esperavam; isso provaria que não há uma postura pragmática única em Portugal, que talvez lá os dois usos co-ocorram em proporções parecidas, enquanto que no Brasil um dos usos seria muito hegemônico.
Se aquilo que dissemos dos portugueses (uma variação pragmática) for generalizado, as piadas pragmáticas dos portugueses contra os brasileiros seriam menos comuns, ou restritas a alguns usos em que nós não sejamos pragmáticos e eles o sejam. Mas, ainda que a explicação sirva para os dois excertos do vídeo, não deve se aplicar a todos os usos. Pois, pode haver muitos casos em que os portugueses interpretariam mais pragmaticamente um enunciado e que os brasileiros interpretariam mais "ao pé da letra" (ao pé do lingüisticamente explícito no enunciado). E, no sentido das representações de que os países são diferentes (ou que foram diferenciados por políticas no discurso), as piadas se constituíram como apropriações destes casos pragmáticos para se forjar enquanto um dos mais importantes campos da "batalha".
A forma como o jogador de futebol fala à reportagem, neste vídeo, parece ter outra explicação. O ethos, as idéias, as expressões não são esperados a um jogador de futebol; seria mais adequado a um filósofo. Então, a piada poderia ser que a burrice do português não é só pragmática, mas discursiva: há embutida uma noção nos sujeitos falantes, ainda que justificada em um esteriótipo, de que cada domínio social constitui consigo um jeito mais adequado de falar.
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No mínimo é curioso fazer um comentário sobre humor e a "burrice" dos portugueses baseado num programa de "apanhados" de um canal de televisão que prima pelo sensacionalismo.
ResponderExcluirPara que os comentários não se apoiem apenas em estereótipos, talvez fosse educativo deixar indicações bibliográficas sobre os estudos linguísticos sobre o humor português.
Há muito mais ignorância por parte dos brasileiros em relação à cultura e sociedade portuguesas do que o contrário.
Pat, obrigado pelos elogios.
ResponderExcluirNão sei se o programa é sensacionalista, porque não sou português. Na verdade, nem sei de que programa você está falando, porque parece que o apanhado é de vários.
Acho que você não entendeu qual é o foco da análise discursiva. Não é confirmar ou recusar que os portugueses sejam burros. É mostrar como esse discurso da burrice do português é construído e em que "provas" lingüísticas ele se "funda". A recíproca é verdadeira, isto é, muitas das piadas portuguesas sobre a burrice dos brasileiros também têm base lingüística.
Sim, são os esteriótipos que interessam para a análise do discurso. Mas, para questioná-los, entender sua maquinaria.
Acho que agora a piada tá explicada.
Não me parece que exista em Portugal a ideia de que os brasileiros são burros. Conheço alguma coisa sobre o vosso país e posso dizer que, em termos gerais, a ideia que aqui se faz sobre a inteligência dos brasileiros é elogiosa. Porque as generalizações são perigosas e não há uma realidade brasileira - há diversas realidades, diversos níveis culturais, diversos estratos sociais, etc. Agora, há dados objectivos - índices de literacia, rendimentos per capita... Aí, onde já não se joga no campo das piadas e das ideias que cada um faz do outro, Portugal aparece como um país muito mais evoluído do que o Brasil (falamos de termos médios, de índices estatísticos). As piadas (anedotas, em Portugal) são uma maneira idiota de avaliação e esse programa televisivo de que fala, muito provavelmente, nunca existiu. Pode dizer-me em que canal foi transmitido?
ResponderExcluirPrezado Anônimo,
ResponderExcluirSe você ler com atenção, vai entender que, para a Análise do Discurso (arcabouço teórico que usei na interpretação), não defende preconceitos; apenas diz que eles existem. Generalizações são perigosas e ideológicas, isso a AD também nos diz. Porém, os esteriótipos existem, e a AD buscará explicar mais a regra do que a exceção.
Se as piadas são formas idiotas ou não, elas são fenômenos do discurso e merecem ser analisadas, até pela sua idiotice, se for o caso. Para fazer humor, é preciso partir de alguns pré-construídos, e a burrice do português é um pré-construído aqui no Brasil. Não que os brasileiros pensem de fato assim, ou que isso seja ofensivo; mas é um lugar comum pelo menos no campo do humor. O que eu procurei mostrar é que, sem esse pré-construído, a piada, o humor não poderia existir, pelo menos não de forma tão suscinta; é suscinto porque retira sua fundamentação num repositório de sensos-comuns, a que chamamos "discurso". Então, o convite que lhe faço é que não despreze o funcionamento lingüístico para que, NELE, se possa tirar conclusões sociais mais profícuas. Se você se detiver mais na sua leitura, verificará que um lugar comum lingüístico nas piadas de português é a diferença PRAGMÁTICA (entendida como outro campo da lingüística) existente entre brasileiros e portugueses (aqui não estou dizendo todos, nem 90%, nem 50%, nem 1%; não me interessam os dados estatísticos para o estudo em questão).
Quanto ao programa, ele foi divulgado no Youtube, como dá para se perceber. Se o programa não existe, então estamos todos loucos. Parece-me que não é UM programa, mas uma coletânea de programas. Ainda que o programa não existisse, desde Aristóteles, o que parece nos interessar é a verossimilhança, não a VERDADE em si, razão pela qual é possível analisar o discurso de obras literárias, piadas, charges e outros gêneros ficcionais.
Espero que tenha ficado claro. Obrigado pelo texto.
Peço desculpa. Nâo tinha visto o vídeo, deparei com o texto por acaso e li-o. Portanto, você estava a falar de coisas que ocorreram. Não tive paciência para ouvir tudo, mas vi que pelo meio está o Miguel Sousa Tavares, escritor que não aprecio, mas que, em todo o caso foi apanhado desprevenido. Tudo aquilo é irrelevante e montado com o propósito deliberado de fazer rir. Em qualquer país do mundo pode colher exemplos semelhantes, equivalentes. Nâo vou muito nessas teorias das grandes diferenças idiossincráticas, de que os «portugueses são assim» e os «chineses são assado» (aqui tem uma bela expressão idiomática). Aqui, há pessoas com cultura e pessoas incultas, boas pessoas e más pessoas,gente inteligente, assim-assim e burra de fugir. No Brasil não? Abraço.
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