sábado, 21 de julho de 2007

Corre, pedala... e nada

Depois do fiasco brasileiro na estréia da Copa América de 2007 (0x3 México), José Simão lançou uma piada em sua coluna, mais ou menos nesses termos: "O Robinho será convocado para a Seleção Brasileira de Triatlo: ele corre, pedala... e nada". Tudo bem que Robinho se recuperou na partida seguinte, fazendo os três gols (pelo menos dois golaços) na vitória contra o Chile. A piada, então, pode estar desatualizada, mas não o interesse lingüístico que se pode ter por ela.

Esse caso parece ser bom para ilustrar a discussão sobre os limites entre sintaxe e semântica. "Corre" e "pedala", tomando como ponto de partida o triatlo, têm uma significação "literal", que é contrastada com uma significação relacionada ao futebol. No primeiro caso, "corre" tem um sentido de finalidade, de especificidade do tal esporte; enquanto que, no segundo, tem um sentido de meio (correr é um meio para se jogar bem futebol). Mas, ainda assim, há muita semelhança entre os dois sentidos do verbo "correr".

Em "pedala", parece que temos dois verbos diferentes, apesar do sentido futebolístico ter uma relação secundária de metônimia em relação ao sentido mais literal, aplicável ao triatlo. Poder-se-ia dizer que, por isso, são um verbo só, e que o sentido futebolístico é um sentido conotativo em relação ao sentido literal de "pedalar". Mas, isso não é um argumento definitivo, porque as histórias das línguas estão cheias de exemplos de verbos que se formaram por deslocamento e se literalizaram depois. Por exemplo, "chegar" origina do verbo latino "plicare", que significava "dobrar". Um argumento para dizer que se trata do mesmo verbo é que o sentido futebolístico não se perdeu totalmente o sentido original. O que não dá para defender é que, por haver a mesma expressão gráfica e acústica (mesmo significante), trata-se necessariamente de um mesmo verbo; as línguas são repletas de homonímias (dois significados para um mesmo significante).

Interesante pensar que o verbo "pedalar" pode ser tanto transitivo direto quanto intransitivo (pode ou não pedir um complemento, ou, nos termos da sintaxe gerativa, pode ter um ou dois argumentos). No sentido do triatlo, mesmo aí podendo haver intransitividade sintática ("eu pedalei por duas horas"), parece estar subentendido um complemento ("eu pedalei [uma bicicleta] por duas horas"); enquanto que no sentido futebolístico, "pedalar" parece ter um caráter somente intransitivo (ninguém pensaria em "eu pedalei a bola" ou "eu pedalei o adversário"). Essa diferença, para alguns teóricos da teoria sintática (não estou falando de Pasquales), seria suficente para atestar que se tratam de dois verbos com a distinção originada desde o léxico ("momento" anterior à DS, deep structure ou estrutura profunda).

Bom, então, temos "corre" como um verbo muito similar nos dois sentidos. Temos "pedala" como um ainda verbo (ou dois verbos), mas que marca uma distância muito maior a depender de qual dos "frames" de significação (o do triatlo e o futebolístico) estamos tratando. Por fim, temos a palavra "nada", que, no frame do triatlo vem do verbo "nadar". Requer-se certo conhecimento enciclopédico do leitor para saber que o triatlo é composto das três modalidades sugeridas. E é por haver essa (ficcional) correspondência (pelo menos no nível do significante) entre as partes da modalidade e o que Robinho faz (ou vinha fazendo) que este seria convocado para a seleção de triatlo (também um "seleção", o que dá a entender que ele faz muito bem as três coisas: mais um exemplo da ironia aplicada ao sarcasmo). O pleno ajuste é um sinal de agudeza do humor nesta peça (poderíamos pensar em termos de coerência, mas isso fica para outro dia).

No frame futebolístico, não há brecha para o sentido anterior de "nada". Temos, então, que invocar nossa memória e pensarmos que expressões do tipo "fez alguma coisa... e nada", ditas com certa entonação, significam que não houve um certo resultado esperável; ou seja, como se o que viesse antes da expressão "e nada" incluísse um pressuposto de um resultado esperado, que não se confirmou: "correr" e "pedalar" são argumentos favoráveis a uma conclusão diferente de "nada". A interrupção tem um caráter adversativo, de mudança da direção argumentativa: "Robinho é esforçado, MAS não está jogando nada". "Ser esforçado" muitas vezes pressupõe uma traço pejorativo: alguém não tem ou não está mostrando talento (muita transpiração e pouca inspiração). Ora, aqui temos "nada" não mais funcionando como um verbo, mas como um advérbio.

Como podemos, a partir da expressão sintática que dá título a esta postagem, saber se "nada" é verbo ou advérbio? É possível somente supor (se os dois primeiros são verbos, o terceiro deve ser) ou ter uma certeza, que pode ser contestada (é o que a piada faz). E o humor joga exatamente com isso, ao mostrar que um outro sentido, uma outra leitura semântica, seria possível de co-habitar a mesma expressão sintática. As reticências promovem a quebra do fluxo; mais que isso, dá à frase uma dicção, próxima ao uso consolidado que mostramos no parágrafo anterior; e, também, promovem um suspense narrativo, que enfatiza a expressão por vir e serve muito bem ao humor.

A convivência entre esses dois domínios de sentido é condição necessária para a estruturação do humor; ao final da piada, retroativamente, ressignificamos tudo o que foi dito, não apagando o sentido inicial (do triatlo), mas fazendo as expressões serem co-habitadas pelos dois sentidos (triatlo e futebol). O que pode ser um indício de que há uma "consciência" e controle do autor, pelo menos no nível de controle (represamento) no desenvolvimento de seu artefato.

Do ponto de vista da semântica, a leitura do título de nossa postagem mostraria que uma interpretação sintática (saber se "nada" é verbo ou advérbio) muitas vezes só é possível de acontecer (ainda no domínio sintático) com a ajuda da semântica. Do ponto de vista da sintaxe, poder-se-ia pensar que os dois sentidos já estavam lá (na mesma frase, ou haveria duas frases?), autorizados pela sintaxe e aguardando um evento do mundo para semânticamente se definir.

Um comentário:

  1. Adorei o blog. Vou divulgar entre os blogueiros do Brasil
    http://www.caralhaquatro.blogspot.com

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