sexta-feira, 15 de junho de 2007

Agora, finge de morto!


















Obra dos meus colegas da Camará Comunicação. Maio / 2007.


Charge não é só ilustração, desenho. Já falei antes que uma foto-montagem pode soar como charge, se buscar coisas como humor, relações de implicitação, tratar de um tema político-social, enfim, se cumprir alguns requisitos identificados como identificadores do gênero "charge". Esta imagem nasceu como cartaz; mas aqui tomo-a no que tem de charge (considero apenas imagem e "Agora, finge de morto!" e até mesmo "Decretos de Serra"; desconsidero a propagando pequena no rodapé). Até porque uma charge pode ser publicável em cartaz, isto é, não só integrar um cartaz, como ser ela mesma afixada, fazendo-se cartaz.

Não achei nenhuma charge do governador José Serra segurando a arma. A Folha de São Paulo não trouxe nenhuma charge sobre isso (vou dar uma olhada melhor); no período, tratou (como costuma tratar) mais da política nacional e por vezes internacional (mas eu diria que esse silêncio é significativo). Também, a própria foto já é caricatural; o governador deu sua caricatura já pronta (estou forçando a barra). A foto, na origem, não o é, mas nessa (e noutras) foto-montagem ela é relacionada com os decretos relativos ao ensino superior e ao movimento das universidade públicas paulistas.

Nesta, em específico, é um pressuposto que apontar uma arma é violência. Aliás, poderíamos pensar isso em termos de um silogismo:

Premissa menor: Quem aponta arma é violento
Premissa maior: José Serra aponta a arma
Conclusão: Logo, José Serra é violento

Neste caso, a premissa menor seria um pressuposto, a maior seria um posto e a conclusão, um implícito. O sentido físico de violência armada deriva-se metonimicamente para o sentido de "violência política" atribuído a Serra. Este sentido é relacionado à posição de que a política de Serra é um abuso: "finge de morto" é ordem cabível a cães, ou a torturadores (o "cap" ao fundo pode suscitar uma memória da tortura militar durante a ditadura no Brasil). "Finge de morto" pode ter um sentido implícito de natureza irônica (aos autores da charge) e interdiscursiva: "finja que nada está acontecendo; não reaja!". Os autores deixam o "outro" (Serra) falar algo que esse "outro" na verdade não falou, mas que poderia ter sido dito, ou melhor, poderia ser produzido pelo lugar enunciativo de Serra (governador, considerado "de direita"), pelo menos no nível do que Maingueneau chama de simulacro (na polêmica, o outro fala em nós, mas destacamos e reelaboramos, expressivamente, pontos que nos interessam no embate, silenciando outros).

O "agora" dá idéia ou de urgência ou de que algo já foi exigido antes ("agora, quero outra coisa"); sugere que as ações de Serra são sistemáticas, fazem parte de uma política. O sorrisinho irônico de Serra ajuda esse sentido e faz dele um caricaturável, a um passo da caricatura. Prato cheio para os adversários, como trataremos ao final do texto.

Relaciono esta imagem com aquele clássico cartaz do Tio Sam: "I want you". O Tio foi mais esperto e sua violência foi mais sutil: "só" apontou um dedo. O Tio chama ("I want you"); o Serra também deve ter querido chamar (querendo-se um não-ranzinza ao eleitorado), mas muitos dos usos feitos dessa imagem (por exemplo, a nossa charge) acaba fazendo-o repelir. Este uso (do Serra repelindo) é quase um dado, mas não é um dado; precisa de quem o elabore, de quem ressignifique algo em outra coisa. A "gafe" é uma reconstituição (é um ver com outros olhos, a partir de um outro "eu", um ver da alteridade, da polifonia) até quando o autor dessa gafe se aperceba imediatamente que a "cometeu".

Há um interdiscurso aqui, entre o que se imagina tenha sido a "intenção" do Serra e o que os autores da montagem quiseram dizer. Esse interdiscurso revela um outro: "ironizo Serra porque ele é meu adversário", poderiam dizer os autores da charge. Isso nos sugere que a interdiscursividade não acaba neste ponto, mas pode ser expandida, por contigüidade: proponho a idéia de um "contágio interdiscursivo" (quem sabe um dia isso vire conceito?).

E há ainda uma outra interdiscursividade, que forjei. Em certo sentido sempre forjamos interdiscursividades, pois os discursos e suas reentrâncias não são fatos empiricamente atestáveis e estanques, mas aqui forcei demais a barra, talvez, uma interdiscursividade em mim; eu poderia também dizer intertextualidade, ou interfiguracionalidade. Estou falando, obviamente, da foto do Serra posta em relação à figura do Tio Sam.

Um comentário:

  1. Caro Paulo,
    Foi por um acaso da sorte que me fez ler o teu comentário de hoje num édito meu já «antigo»...
    Obrigado! Quanto a links, não faço questão deles: quem quiser é livre de o fazer. O meu «blogroll» é um registo dos meus amigos da blogosfera; alguns não têm contrapartida, e isso não me incomoda de todo.
    Felicidades para os estudos de análise do discurso, uma área que sempre me fascinou, como aliás quase todas as da Linguística em geral.
    Abraço! :-)

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