sexta-feira, 9 de março de 2007
Hipérbole sobre a redução, da maioridade penal
Glauco. FSP, 13/02/2007.
De início, vejamos certas condições de produção desta charge. Um dos principais temas em evidência no período próximo à data de publicação da charge é o da redução da maioridade penal. Esse tema volta e meia se instala em nossas vidas, em geral vindo à tona logo após um "crime grave" "tomar" a grande mídia. E, nesta, o tema fica por várias semanas, principalmente em veículos e programas mais sensacionalistas. É claro que o tema não aparece de forma neutra; em geral, a grande mídia toma o partido da redução, não só por sua ojeriza, ainda que inconsciente, contra a classe e as camadas subalternas, como também por seu "amor" à audiência desses segmentos, cujo senso comum se mostra favorável à redução. Aproveitando o ensejo midiático e popularesco, medidas legislativas são tomadas pelos parlamentares considerados oportunistas e de direita, com a promessa de que certo projeto de redução será votado logo. Um discurso de viés socialista diria que a grande mídia, ao pautar a redução da maioridade penal como "panacéia dos males da criminalidade", exerce um papel ideológico de silenciar as mudanças estruturais possíveis de serem pensadas com a finalidade de diminuir de fato os chamados índices de violência. Outros posicionamentos, de caráter religioso e por vezes até humanístico-liberal, também são silenciados; muito embora estes se inscrevam nos limites da ordem, têm nuanças (e disso podem pautar reformas necessárias, não revoluções) que os diferenciam do senso comum e da grande mídia no que respeita o tema, relacionadas a noções como as de "amar o próximo", "vide a mim as criancinhas", "bom selvagem" rousseano e "igualdade de oportunidades".
Na charge em questão, diz um dos policiais: "Somando a gang toda passa dos 18 anos!". Se podemos contar quatro cabecinhas, chegamos à uma idade média de 4 anos e meio. Sabemos que são policiais por conta do traje e por estarem fazendo uso de força repressiva. Mas como sabermos para onde os policiais estão levando os garotos? Nosso conhecimento enciclopédico poderia dizer que crianças também podem ser capturadas por policiais, e depois serem encaminhadas a "instituições reeducativas", como a Febem. Essa é uma interpretação possível, mas não é a mais "engraçada" (ainda que o humor seja "negro"), e, por ser a charge engraçada, essa interpretação possível se faz desaconselhável. Tão desaconselhável que nosso conhecimento enciclopédico até falha, isto é, não nos diz da possibilidade de esses garotos estarem sendo encaminhados às "instituições reeducativas". "Esquecemos" aquele conhecimento enciclopédico exatamente por não considerarmos que esses "18 anos" sejam uma informação arbitrária. É por não isolarmos os "18 anos" dos discursos em jogo quanto a esse tema, em dadas condições de produção, ou seja, é por uma noção ainda que vaga desse embate discursivo, que esse número não nos é entendido como arbitrário.
Sendo a hipérbole uma característica do humor em geral e da charge em específico, uma redução ainda mais drástica da maioridade penal é fantasiada. Lemos a expressão "18 anos" como a fronteira entre dois discursos: um que quer que a idade penal mínima permaneça nesse valor, e outro que a quer abaixo. O que antes era a idade mínima para se prender uma pessoa, tornar-se-ia a a idade mínima para prender quatro, ou até mais. É como se, no fundo, fosse a mesma coisa, ou seja, como se um dos discursos em jogo dissesse: "vocês [os adversários] querem que a idade mínima fique acima dos 18 anos... pois bem!". Algumas nuanças de leitura estão dentro deste quadro: podemos entender que os policiais reinterpretam a lei, já que ela é dura de ser mudada, para realizarem seus desmandos (eu relacionaria materialmente essa noção com outros textos que denunciam o abuso da força policial), ou poderíamos entender que quem reinterpreta a lei dessa forma são a posição e os segmentos ou agentes pró-redução, considerados autoritários e personificados naqueles policiais.
Talvez seria possível pressupor um posicionamento do autor: defender a manutenção da idade penal. Estou prometendo há algum tempo falar sobre o "ethos chargista", algo talvez parecido com o "ethos poético": ao poeta é em geral (alguns poetas podem escapar disso) atribuída, aind que tacitamente, a missão de tocar as "grandes questões do espécie humana", com sensibilidade e altruísmo. Ao chargista também há um imperativo parecido, de, ao mesmo tempo, não perder a piada e não perder o amigo. É claro que isso pode ser uma tolice; apenas uma possibilidade, ou preponderância, não uma generalização. Muitas vezes não é o ethos o que pesa, mas a posição discursiva do autor, possível de ser identificada numa série mais ou menos extensa de charges.
Outro índice para dizermos que há um posicionamento do autor é a forma como os policiais são retratados: gigantes, fortes (ou até obesos), bem armados. Os olhos fechados e o rosto ao mesmo tempo idiota e de certa forma feliz sugerem estarmos diante de verdadeiros brucutus. O vigor físico dos policiais contrasta com a fragilidade dos garotos (chargista e nós torcemos para o mais fraco) e nos sugere que não é para uma "instuição reeducativa" que estes estão sendo levados: estão sendo tratados "como gente grande". Arrisco atribuir um comentário latente da charge em relação ao que está expresso (essa possível posição é expressa como um método do interpretar, que aqui emprego): "defendem a posição que defendem porque não vêem e não pensam, são apenas braços armados que realizam os ditames da ordem e do senso comum". Os policiais dizem, não é somente um, apesar da indicação do balãozinho.
Diríamos que o mesmo enunciado expresso pelos policiais poderia transmitir um ethos piedoso, mas para isso seria preciso uma outra configuração física dos personagens, e talvez substituir a palavra "gang", que estigmatiza. Mesmo assim, a posição do autor poderia continuar sendo a de contrariedade à redução da maioridade penal, embora o comentário latente proposto tivesse que ser alterado para algo do tipo: "é porque são sensíveis e espertos que percebem a arbitrariedade de prenderem esses jovens, e por isso realizam a tarefa a contragosto". O fato de a mesma posição poder ser defendida por dois comentários latentes e por duas cenas diferentes que desconfiamos não estar somente na charge (mas também no ethos chargista e no discurso de certo chargista) a ancoragem para supormos o posição da charge e o posicionamento do autor.
Normalmente, a redução da maioridade penal proposta é para 16 anos. Sendo a hipérbole uma característica do humor em geral e da charge em específico, uma redução ainda mais drástica é fantasiada. Essa hipérbole chacoalha o senso comum e talvez assuste em nós certa moção civilizatória de linxar nos outros (se preciso, os outros) os impulsos nefastos similares dos quais já fomos capazes e que foram recalcados em nós. Se essa charge for lida pela chave do discurso socialista (diríamos que há também um discurso na recepção) ela pode sugerir que reduções sucessivas da maioridade penal podem ser "necessárias", porque o problema estrutural não foi atacado. Em um ponto de contato (interdiscursivo) entre o discurso socialista, o religioso e o humanista-liberal, poderíamos ler na charge um posicionamento contra o caráter sanguinário, autoritário e linxatório do senso comum.
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