sábado, 17 de março de 2007

Isso é que é versatilidade



foto: Giuliana Gramani. Site kibeloko.blogspot.com. Março/2007.

Trata-se de uma placa publicitária. Sabemos que, na sociedade de troca mercantil de produtos e serviços, essas placas se direcionam para consumidores em potencial. Ou melhor, visam a transformar consumidores potenciais em consumidores de fato, a partir de um estímulo que se julgue bem direcionado. Além de se dirigir para consumidores em potencial, a placa se dirige a todos (inclusive àqueles que aqui não chamamos de "excluídos", e sim de marginalizados, pois não estão fora), por seu caráter oblíquo (perlocucioal, se forsássemos a barra) de propagação de discurso que sustenta a existência tal sociedade mercantil.

As partes da enunciação invocadas nesta placa, assim, são o(s) que oferta(m) os serviços e aos transeuntes daquela rua, que potencialmente seriam convencidos a necessitar de tais serviços, ou não. Nesta sociedade, é papel da propaganda inventar necessidades, que para muitos, antes, tenham sido supérfluas (comprar informações acerca de discos voadores, por exemplo). É claro que a magnitude do chamado vai depender da empresa e das bases históricas que colaborem para um desejo se disseminar. Pela placa, deduzimos se tratar de um pequeno negócio, ou melhor, de três pequenos negócios. Principalmente pelas características da placa (pequena, sem logotipo, sem nome da empresa) e também porque não concebermos como grande três negócios em um mesmo lugar (que, mesmo sem o conhecermos, imaginamos pequeno).

É em relação ao discurso empresarial hegemônico que podemos achar graça nesta placa. Este discurso é homólogo à sociedade capitalista e o entendemos como algo mais geral, especificado majoritariamente em disciplinas que também eclodiram na fase recente do capitalismo, como o da administração e do marketing. De acordo com esse discurso, as empresas devem ter um único ramo. É claro que, depois do toyotismo, o imperativo da diversificação apareceu, habitando lado a lado com a especialização fordista. Mas, em geral, para as empresas, essa diversificação é de várias ordens e não tanto de negócios dispersos. É claro que, por vezes, o toyotismo orientará empresas do setor produtivo a investir em outros setores, como o financeiro e o de serviços (por exemplo, uma montadora de automóveis se tornar também um banco, ou aplicar no capital financeiro). Algo nos diz que não é nesse domínio que encontramos a graça dessa placa.

A diversificação presente na placa (conserto de bolsas, estúdio de gravação e consultoria sobre discos voadores) é uma formulação que se sustenta na face oposta desse mesmo momento do capitalismo. Se o lado mais exaltado pelo discurso empresarial é o da versatilidade que permite maior acúmulo de capital, inspirado em modelos de grandes corporações, o outro lado é o da pauperização e do desemprego de parcelas cada vez maiores dos filhos do trabalho que uma reestruturação produtiva promove.

O imperativo, então, é o mesmo, pois o discurso de certa forma funciona não pontualmente mas enquanto certa estrutura. A solução para o problema é o "mais do mesmo", isto é, uma dose maior de uma mesma lógica que cria e sustenta o problema, cujas raízes o discurso empresarial, por razões ideológicas, não é capaz de apresentar. "Os trabalhadores também devem se diversificar". Isso exime o sistema social de sua culpa e, algo comum à forma-sujeito jurídico-capitalista (pós revolução francesa), responsabiliza o sujeito pelos parcos sucessos e pelos muitos fracassos. O resultado é desemprego, sub-emprego, mundo dos "bicos". A placa em questão guarda certo parentesco com o imenso contingente de pessoas levadas a catar lixo para sobreviver.

Assim, a placa seria engraçada não simplesmente por causa da diversidade, porque ninguém riria de uma placa (ou de um outdoor) que anunciasse "Banco Volkswagen", ainda que uma fábrica de carros e um banco sejam coisas tão distintas quanto consertar bolsas e realizar consultoria sobre discos voadores. Pode ser que rimos da hipérbole: não dois, mas três negócios totalmente distintos. Mas, sobretudo, rimos da precarização e rimos por desconfiar da qualidade dos serviços prestados, uma vez que o discurso empresarial projeta no seu domínio e em outros domínios da sociedade o imperativo do especialista (ainda que o primeiro negócio marcado na placa deva ser o principal, dada às ênfases gráficas: topo, tamanho). Há, aqui, uma idéia de que, em geral, rimos junto com (a partir de) os discursos dominantes. Eles são nossa âncora, mesmo e principalmente quando o humor os contraria, se eles são a âncora de quase tudo (embora não evite contradições). Rimos, por fim, do último ofício, que destoa dos serviços técnicos considerados plausíveis (consertar bolsas e gravar músicas). Rimos por imaginarmos que todos esses ofícios são realizados por uma só pessoa (sobretudo se essa placa estiver à porta não de um ponto comercial mas de uma residência).

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