Essa expressão latina significa que não é por ter barba que se é filósofo. Trata-se, pois, de uma crítica aos falsos filósofos, aos que são filósofos só pela aparência (hoje em dia, por diploma) e não em essência. A expressão só nos reforça o que já sabemos: o ofício dos filósofos era considerado um ofício masculino. Abstraindo-a, está dito que o traje não faz o profissional; abstraindo-a mais ainda, a aparência não faz a essência. A tradução para o português daquela expressão seria, quase termo a termo (no latim clássico não havia artigo):
(1) A barba não faz o filósofo.
Ao traduzirmos para o português, um outro sentido, impossível ao latim na expressão original, é acrescentado. Temos, então, duas possibilidades para interpretarmos (1):
(1a) Não é a barba que torna um homem filósofo.
(1b) O filósofo não tem a barba aparada.
Em um primeiro momento, pensaríamos se tratar de expressões antônimas, pois (1a) afirma que a aparência não faz o filósofo e (1b) caracteriza o filósofo como aquele que não faz a barba. Porém, podemos encontrar dois sentidos para (1b), sendo que (1b') marcaria mais fortemente a oposição com (1a):
(1b') Basta possuir barba para ser filósofo.
(1b'') Para ser filósofo é preciso possuir barba.
Em (1b'), possuir barba é condição suficiente para ser filósofo; em (1b''), possuir barba é condição necessária para tal. De (1b'') podemos depreender que "o filósofo" pode querer dizer "todo filosófo" ou "o bom filósofo" (uma prescrição, direcionada a quem é ou deseja ser filósofo, acerca da aparência de todo filósofo ou pelo menos dos bons filósofos). Mas, fiquemos com as expressões (1a) e (1b), deixando um pouco de lado as suas inúmeras nuanças.
Em latim, não é impossível compreendermos a expressão inagural como (1b) porque há, nesta língua, marcação de casos. "Barba" está no nominativo, só podendo ocupar a função de sujeito (ou predicativo do sujeito), ao passo que "philosophum" está no acusativo, só podendo ocupar a função de objeto direto. Embora incomuns, e (2b) ser ainda mais, são possíveis em latim outras expressões, que invertam os termos sem grandes prejuízos de sentido:
(2a) Philosophum barba non facit.
(2b) Philosophum non facit barba.
É claro que alguma mudança de sentido haveria, por exemplo, de enfoque recair sobre "philosophum" (topicalização) e por essas inversões serem estranhadas ou por vezes entendidas como poéticas. O que quero dizer é que, mesmo estando na posição inicial da frase, "philosophum" continua sendo objeto direto, por causa de sua terminação de acusativo (-um). De modo análogo, "barba" está no nominativo e exerce neste enunciado a função de sujeito, independentemente de sua posição. Se eu quisesse dizer algo parecido com (1b), precisaria modificar a terminação de caso dos dois núcleos substantivos, independetemente da ordem.
(3a) Philosophus barbam non facit.
(3b) Barbam philosophus non facit.
Ou seja, a ordem sintática, em latim, não é determinante neste exemplo (em outras, ela o será). Em português, sim, pois não temos terminação de caso e tanto sujeito quanto objeto direto tem natureza substantiva e são não-preposicionados, portanto, sintagmas nominais. (1) é uma tradução para a frase inaugural, mas, sendo ela a escolhida, abre margem para pelo menos duas interpretações. A interpretação privilegiada seria (1a), pois é do padrão sintático do português lançar o sujeito primeiro. Porém, como não há marcação de caso, é possível entender que o objeto direto foi lançado primeiro, por questão de ênfase. É quase como se houvesse uma vírgula que separaria tópico e comentário:
(4) A barba, o filósofo não faz.
Em suma, não há ambigüidade na expressão latina. A expressão em português que traduz a expressão latina pode, sim, comportar ambigüidade, pois pelo menos dois sentidos disputariam a expressão. Isso é "autorizado" pela sintaxe, que permite, no nível da exceção, que o objeto direto ocupe a posição inicial da frase em português. Será a pragmática, a lingüística de texto ou a análise do discurso que poderão ser invocadas para resolver a peleja em favor de um ou outro sentido (ou até mais): qual a situação de interação, quais outros enunciados se relacionam a este, quais as posições discursivas sobre filósofos, barbas, ofícios, aparência, essência?
No caso da tradução latina, as coisas são mais fáceis. Sabendo que a morfossintaxe latina só autoriza uma interpretação, pelo menos no nível superficial, para o que quer dizer a expressão latina. Podemos, então, encontrar uma expressão em português que melhor se aproxime da expressão latina: (1a). Mas, como tradução não é somente reproduzir "conteúdo" mas também levar em conta a expressão, (1) parece ser a melhor tradução, e que os leitores / ouvintes sejam capazes (eles o serão, principalmente se falantes nativos e auxiliados pelo texto) de resolver o impasse. Pois, mesmo em (1a), a polissemia (diversidade de significados) não estaria totalmente resolvida (ela resiste sempre): uma expressão nunca quer dizer uma só coisa. Mesmo um falante do latim poderia entender a frase genérica que apresentamos aqui de "n" formas, não com base na dubiedade sintática, mas em razões pragmáticas, textuais e discursivas.
Por exemplo, se esse falante é filósofo e diz ao dono da barbearia (pessoa) que quer se barbear, e se o barbeador, sabendo que o potencial cliente é filósofo, o desaconselha, o enunciado inaugural deste trabalho poderia significar um posicionamento e uma resposta resoluta daquele falante, e poderia ser lido como algo do tipo "apesar de eu ser filósofo, o senhor pode agora fazer a minha barba". Se aquele enunciado latino aparecesse em um texto atual em português dirigido a advogados, poderia ser uma metáfora de "o terno não faz o advogado".
O verbo "facio" em latim abarca o sentido de "construir, realizar", mas a questão é se pode ser usado também como o usamos em "fazer a barba". A ambigüidade em português é possível não só pela possibilidade de inversão dos termos substantivos, como pelo fato de "fazer", em português, poder significar "construir, realizar" (em "A barba não faz o filósofo") como também "retirar", "fazer a não-barba" ou somente "aparar a barba levemente" (em "O filósofo não faz a barba"). No segundo campo de sentido de "fazer", apesar de a barba ser "desfeita" total ou parcialmente, a ênfase seria no trabalho de aparar a barba, que é feito.
É mais comum dizer "O hábito não faz o monge".
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