quinta-feira, 7 de junho de 2007

Chávez: reagi a ato 'grosseiro' do Congresso Brasileiro

O título da postagem deveria ser "Aspas das aspas", mas, como aqui sempre parto de uma frase para analisar, coloquei a frase-objeto deste texto. Essa frase é exatamente uma manchete do Yahoo!Notícias em 03/06/2007. As aspas podem servir para várias coisas: somente destacar uma expressão, indicar que ela é de origem estrangeira... Mas, vou me deter a um tipo específico de sublinhamento: as aspas que marcam que a expressão destacada é de outra origem, a saber, marcam a expressão como sendo a) ou de outro autor / outra obra, b) ou de um outro lugar discursivo que o autor reconhece ou intui e do qual pretende se distanciar. Não vou aqui destacar (o que seria importante) as condições de produção deste dizer (indico a leitura daquela matéria e de outras circunvizinhas); no nível basicamente lingüístico, conseguimos supor que Chávez estaria retomando (verbo no pretérito perfeito) algo que disse e/ou fez em relação a um dito e/ou feito inicial do Congresso Brasileiro. Estou aqui interessado no aspeamento da palavra "grosseiro".

Ora, na manchete, o nome "Chávez" e os dois pontos já indiciam quem falará, ou pelo menos abre a possibilidade de indicar, confirmada na sequência: "reagi" inclui um "eu", que deve ser atribuído a "Chávez", porque Chávez é aquele que estaria dizendo, uma vez que nenhum outro possível "eu" é indicado. Então, o enunciado depois dos dois pontos seria inteiro atribuído a Chávez, e não somente "grosseiro". Isso quer dizer que seria esperado que: 1) ou toda a fala fosse aspeada, 2) ou não se aspeasse nada. Por que só "grosseiro" estaria entre aspas? Como assim, aspas das aspas? Como assim, se toda a fala é do Chávez e não só "grosseiro", se as aspas neste caso não parecem cumprir a função de indicar origem estrangeira, se não parece corriqueiro os veículos de imprensa escrita relevarem à toa uma palavra, em especial em uma manchete, por convenção inclusive gráfica?

Na verdade, há um outro locutor aqui além do Chávez, como se fosse o jornalista-autor (que não assina), o editor ou o "próprio" portal de notícias personificado. E este outro locutor traz para a cena um outro enunciador: aquele que considera que a palavra "grosseiro" está fora de lugar. Estes "outros" estão sempre presentes, interferindo no autor, mas naquela manchete deixam-se ver, denunciam-se, tornam-se espessos, e talvez esse seja um ótimo material para que desenrolemos, de maneira explícita e não banal, considerações acerca do caráter ideológico, e não puramente informativo, da imprensa, e, por que não dizer?, de outros domínios.

De certa forma, as aspas tentam caracterizar o desequilíbrio de Chávez, sendo possível disso derivarmos que Chávez é sempre desequilibrado, e isso pode ser ao mesmo tempo a origem e a chegada (intertextualmente, no interior de uma mesma formação discursiva) de outras críticas mais ideológicas, como, por exemplo, as que associem a (falta de) política de Chávez a uma seqüência de atos insanos. Aqui, a análise das condições de produção se faz imprescindível, mas, por economia de espaço, deixo para o leitor, aberta, esta lacuna.

Há, então, naquela manchete, uma interferência de um outro locutor (alguém do site de notícias ou o "próprio" site) e de um outro enunciador (o discurso politicamente correto, e, aprofundando, até o de uma formação discursiva, heterogênea, que engloba anti-reformismo, anti-socialismo, republicanismo, liberalismo etc., cuja síntese seria o anti-chavismo) na fala do Chávez, aqui não tão pura, embora a ele atribuída como pura. Pois, se Chávez de fato disse (ou mesmo escreveu) aquela frase, não deve ter colocado aspas em "grosseiro".

Sabemos que as entrevistas e os excertos de fala nem sempre são a transcrição fiel da fala-fonte. Há recortes, paráfrases e, algumas vezes, paródias. Interessante percebermos que duvidamos de todas as palavras da manchete, menos de "grosseiro"; ou seja, mesmo que Chávez não tenha dito aquelas exatas palavras (em espanhol, é claro), naquela exata ordem, pressupomos que ele tenha dito algo e algo que segue a idéia geral da fala, e que dentro do que ele disse havia a palavra "grosseiro" (o corpo da matéria diz que Chávez teria dito "comunicado grosseiro", e não "ato grosseiro" como traz, talvez por questão de economia gráfica, a manchete). Isso talvez porque seja uma palavra demasiado marcada, incomum ao meio jornalístico e ao meio político; se uma palavra assim aparece, não deve ser fortuita.

Um comentário:

  1. Muito legal! Isso é um material muito rico pra aulas... como a partir de muito pouca coisa (duas aspas) pode-se debater tanta coisa... :)

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