quarta-feira, 6 de junho de 2007
Veja bem (Jorge Furtado)
Jorge Furtado. Veja bem. Curta-metragem (06:16).
Este vídeo, do mesmo autor do bom "Ilha das flores" e do quase-fútil "Meu tio matou um cara", é dividido em "Lado de dentro" e "Lado de fora".
A narração da primeira parte é do poema "Jornal de Serviço", de Carlos Drummond de Andrade. É uma justaposição de elementos nominais. Poderão dizer que é uma mera listagem, mas é um texto: a justaposição é uma tônica coesiva, e neste vídeo ganha laços com as imagens; e, ao só enumerar, chama o expectador a completar os sentidos. Podemos entender esta parte como uma crítica materialista à sociedade da mercadoria (Marx, O Capital), ou pelo viés funcionalista (Durkheim, Divisão social do trabalho), que fundamenta que a divisão social do trabalho torna a sociedade mais complexa. O "Lado de fora" pode significar o lado das aparências, das louvações ao capitalistmo.
A segunda parte é um texto em prosa poética de João Cabral de Melo Neto (por sinal, o primeiro livro publicado de João Cabral), "Os três mal-amados". É o texto de um dos mal-amados, Joaquim. Neste vídeo, o "amor" que rói tudo ganha um outro sentido: é o trabalho estranhado que gera as "maravilhas" da primeira parte. O "Lado de dentro" é pernicioso e subterrâneo; é de imagens carregadas, monótonas e mais lentas; a narração é mais cabisbaixa; a "trilha sonora" é grave (um violoncelo), de uma só nota. São as tripas. O lado de dentro só pode ser de dentro na relação com o de fora; um lado e outro se implicam nesta sociedade (pode ser para isso que o título nos quer chamar a atenção).
Por isso que dizem que autoria não é inventar nada do zero; e sim ressignificar outros dizeres. Aqui, esses dizeres são repetidos, e apesar disso ganham novo sentido.
Abaixo, os dois textos:
Jornal de Serviço
(Carlos Drummond de Andrade)
I
Máquinas de lavar
Máquinas de lixar
Máquinas de furar
Máquinas de curvar
Máquinas de dobrar
Máquinas de engarrafar
Máquinas de empacotar
Máquinas de ensacar
Máquinas de assar
Máquinas de faturamento
II
Champanha por atacado
Artigos orientais
Institutos de beleza
Metais preciosos
Peleterias
Salões para banquetes e festas
Sondimentos e molhos
Botões a varejo
Roupas de aluguel
Tântalo
III
Panelas de pressão
Rolos compressores
Sistemas de segurança
Vigilância noturna
Vigilância industrial
Interruptores de circuito
Iscas
Encanadores
Alambrados
Supressão de ruídos
IV
Doenças da pele
Doenças do sangue
Doenças do sexo
Doenças vasculares
Doenças das senhoras
Doenças tropicais
Câncer
Doenças da velhice
Empresas funerárias
Coletores de resíduos
V
Papéis transparentes
Vidro fosco
Gelatina copiativa
Cursinhos
Amortecedores
Resfriamento de ar
Retificadores elétricos
Tesouras mecânicas
Ar comprimido
Cupim
VI
Mourões para cerca
Mudança de pianos
Relógios de igreja
Borboletas de passagem
Cata-ventos
Cintas abdominais
Produtos de porco
Peles cruas
Peixes ornamentais
Decalcomania
VII
Peritos em exame de documentos
Peritos em imposto de renda
Preparação de papéis de casamento
Representantes de papel e papelão
Detetives particulares
Tira-manchas
Limpa-fossas
Fogos de artifício
Sucos especiais
Ioga
VIII
Anéis de carvão
Anéis de formatura
Purpurina
Cogumelos
Extinção de pêlos
Presentes por atacado
Lantejoulas
Sereias
Souvenirs
Soda cáustica
IX
Retificação de eixos
Varreduras mecânicas
Expurgo de ambientes
Revólver para pintura
Pintores a pistola
Cimento armado
Guinchos
Intérpretes
Refugos
Sebo
Os Três Mal-Amados
(João Cabral de Melo Neto)
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
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fantástico o vídeo!
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