O título é citação de Millôr Fernandes. O primeiro período traz uma fórmula batida: o homem é um (ou o único) animal que alguma coisa. Que pensa, que fala, que trabalha, que sabe que vai morrer, etc. A relação interfrástica com o que se segue (E rindo ele mostra o animal que é) vem de certa forma desmentir a primeira parte, como se o texto nos dissesse, metalingüisticamente, nas entrelinhas: "espere, não leve muito a sério a primeira parte". Será?
Tudo bem, há esse aspecto de quebrar a seriedade do enunciado, fazendo aproximar 1) o ethos do autor, 2) o sentido do texto e 3) o seu tema, sendo o denominador comum desses três aspectos o humor. A leitura que fazemos a seguir entende que a primeira parte não estabelece com a primeira uma relação paradoxal, e sim de complexificação, e nessa complexificação é possível achar graça. Só acharemos graça se entendermos a expressão, ou seja, se a levarmos a sério.
A primeira parte da expressão já foi enunciada por outros filósofos, ou podemos imaginá-la sendo: o enunciador genérico é um ser filósofo ou a própria voz da filosofia. Ao engendrar isso, o autor estabelece essa cena filosófica, complexificada na sengunda parte da expressão, que de certa forma desbanca a primeira. A segunda parte também pode ser atribuída ao pensamento filosófico, embora sua afirmação contraditória à primeira nos quebre o óbvio e nos conduza ao humor e embora não reconheçamos sua estruturação como um óbvio da filosofia, como a primeira (O homem é...). Na primeira parte, "homem" é diferente dos outros animais, sendo o elemento diferenciador o ato de rir; e, por pressuposto, embutimos o ato de pensar, sendo o ato de rir mais complexo que aquele que lhe serve de base (o pensar). Como se o texto dissesse: "tudo bem que outros animais também pensem, mas só o homem, depois de pensar, ri". Na segunda parte, "ele" retoma "homem" e agora aproxima-o a "animal irracional".
Em "Elogio da Loucura", Erasmo de Roterdã aproxima loucura e riso: o homem não como o de Descartes, mas a porção animal do homem expressa na loucura de uma forma geral e nos seus modos, como a vaidade, o prazer carnal e, também, o riso. O teatro de Anchieta é uma tentativa de catequisar índios pela via sensória do teatro, da dança e da festa (e também da graça humana, não só a de Deus), se pela razão e só pela palavra seria demais para "selvagens". Também a expressão latina "Ridenti castigat mores" (Rindo se corrige a moral) dá idéia de que o humor encena e exige do receptor uma reflexão. Assim também a teoria da metáfora e muito da retórica vai buscar mostrar que uma imagem vale mais que mil palavras, e muitas vezes vai-se defender que o humor é uma imagem exacerbada. Estabelecemos dois macro-discursos filosóficos, que, logicamente, se interagem, interdiscursivamente: um da primazia da razão e outro da primazia dos sentidos.
O parágrafo anterior aponta caminhos, porque aprofundar muito e lapidar a redação não é objetivo neste blog. Creio que as bases de minha chave de leitura para a expressão de Millôr está dada, por isso posso concluir. A primeira parte da expressão aponta uma diferença do homem para com outros animais; uma diferenciação importante, embora sempre possamos dizer que outros animais também riem (ou que também pensam, ou que também falam, etc.), porque é constitutivo deste tipo de expressão generalizante que o leitor tente contestá-la. A segunda parte diz que, por rir, o homem ameniza o seu lado racional, ou melhor, lança mão dele para algo mais prazeroso (daí imaginarmos um pressuposto: o homem é um animal que pensa), e exacerba seu lado sensório, aproximando-se por isso dos outros animais, que, diferente do homem (e daí o nó circular da expressão), não riem. Ao rir, o homem se difere e se aproxima dos outros animais.
A boa sinteticidade da expressão traz margem para outras leituras, embora eu não as prefira. A primeira leitura é pela via da redundância: O homem é um animal que e, por rir, mostra que é um animal diferente dos outros. Essa leitura se alinha com um discurso muito tradicional.
É possível ainda uma leitura de forma a apartar totalmente pensamento e riso. Aí, "riso" teria o sentido de "escárnio". Por exemplo, por não pensar, o homem ri, debocha do seu semelhante, animaliza-se. "Riso" poderia ter um sentido mais amplo e se aproximar do prazer decorrente de atos então considerados "irracionais", como a tortura, o genocídio, coisas que só o homem (animalizado, ou, o pior dos animais) pode fazer.
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