terça-feira, 22 de maio de 2007

O estudo de latim nos cursos de letras

Este texto foi escrito para o Boletim da Faculdade Comunitária de Indaiatuba (FAC / Anhanguera). Embora não tenha nada a ver com humor, espinha dorsal deste blog, reproduzo o texto aqui.
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O latim foi praticamente abolido do quadro de disciplinas do ensino básico no Brasil. Permanece como matéria obrigatória nas faculdades de letras. Mas, que língua é essa? Por volta do ano 500 d.C. já não se falava mais o latim, pelo menos não o mesmo latim. A queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) é usada como marco desse término, uma vez que a dispersão dos territórios com a vitória dos povos bárbaros traz também uma dispersão lingüística: o latim acelera seu processo de transformação, resultando (em torno do século VI) nos proto-romances, que por sua vez dariam origem às chamadas línguas neolatinas (por volta do ano mil).

Entre as neolatinas, as mais conhecidas para nós são as que se converteram em línguas nacionais, como os atuais italiano, francês, espanhol e português; em virtude dessa origem comum, aquelas três primeiras línguas são as mais fáceis de serem apreendidas por nós, falantes de português. As quatro línguas citadas pertencem ao oeste europeu, região que Roma não só dominou econômica e militarmente (como no resto do mundo conhecido, desde o século II a.C. até a queda), mas também influenciou culturalmente, através da língua, da cultura greco-romana e, depois do século IV, através da difusão do catolicismo.

Mas, mesmo no auge do Império, o latim não era um só. Afirma-se que existiam um latim clássico (inspirado em grandes escritores como Cícero, César, Salústio etc., latim escrito e próximo do que era falado pelas elites romanas) e um latim vulgar (latim falado pelas camadas populares; vulgar não em sentido pejorativo; vulgo quer dizer povo). Foram os soldados, os administradores e os trabalhadores romanos em geral que expandiram o Império. Eles levavam a língua que conheciam (o latim vulgar) e se assentavam muitas vezes definitivamente na nova região. Foi da modalidade vulgar do latim que surgiram as línguas neolatinas. Por exemplo, a palavra orelha vem da forma vulgar oricla, rechaçada pelo latim clássico, que mantinha auricula. Entender uma língua como histórica, como resultado de um processo lento de mudanças e relacionada a aspectos ideológicos e políticos parece ser uma das contribuições do latim para a formação dos professores de língua(s).

O preconceito lingüístico atual contra o modo de falar das camadas populares poderia ser questionado se todos (e os gramáticos da TV) soubéssemos que a nossa língua “correta” é resultado de uma sucessão de “erros” do latim. E que não há um jeito único de falar a língua portuguesa (como não havia para o latim), se ela se apresenta de modos diferentes: oral e escrito; formal e coloquial; variando de região para região; variando em razão da camada ou do grupo social. Outra coisa: podemos traçar um paralelo entre o poderio do Império Romano e a hegemonia de um outro império nestes tempos capitalistas: o Império Norte-Americano. O filme “Spartacus” (Stanley Kubrick, 1960), baseado no livro homônimo de Howard Fast (1952), retrata a revolta de gladiadores e de outros escravos contra a dominação romana e é uma crítica indireta ao Império Norte-Americano, que censurava duramente na década de 1950 e 1960 (e hoje?) pessoas e movimentos anti-capitalistas, nos EUA e no mundo.

O critério muitas vezes usado para caracterizar o latim como uma língua morta tem sido o fato de nenhuma pessoa viva o ter como língua materna. Porém, muito depois do ano 500 d.C. (depois de “morto”), o latim clássico continuou sendo a principal língua de cultura do Ocidente. Os trabalhos universitários, os tratados de medicina, matemática, direito e filosofia eram escritos ou reeditados em latim clássico; isso com freqüência até por volta dos séculos XVII e XVIII (depois, as línguas neolatinas passaram a gozar de maior dignidade), e em algumas universidades européias ainda é facultado redigir trabalhos em latim. O Império, que antes perseguia os cristãos, primeiro permite o cristianismo e depois o adota (por Constantino, 314 d.C.) como credo oficial, na esperança de ganhar as massas e camuflar sua decadência; com isso, a Igreja Católica (Apostólica Romana, diga-se) se consolida e toma o latim como sua língua oficial, o que permanece até os nossos dias. Além do mais, o latim está de certa forma vivo nas línguas neolatinas e em outras línguas. Estima-se que o inglês, que não é uma língua neolatina e sim da família anglo-saxã, tenha cerca de 70% de seu léxico (vocabulário) derivado do latim, resultado da época do domínio francês em parte da Bretanha. Essa origem comum faz com que muitas palavras do inglês nos sejam cognatas (identificáveis).

O estudo da etimologia (origem das palavras) é outro aspecto interessante para a formação do professor de português. Um dos dilemas dos estudantes é a ortografia: por que se escreve discípulo, máximo, cidade, sempre e libertação usando letras diferentes para um mesmo fonema /s/? A resposta é que a ortografia, no Brasil padronizada a partir do século XIX e principalmente durante o século XX, muitas vezes buscou recuperar a origem latina das palavras. Em latim tínhamos discipulus, maximus, ciuitas, semper e liberatio, sendo que as letras grifadas representavam sons diferentes, que começaram a coincidir na passagem do latim vulgar para o galego-português. As mudanças do latim vulgar para cada uma das línguas neolatinas não ocorreram de qualquer jeito, mas seguindo certas regularidades. Por exemplo, no português tivemos quase sempre a queda do -l- e do -n- intervocálico, isto é, entre vogais (manus>mão; color>coor>cor), fenômeno que não ocorreu no espanhol (manus>mano; color>color). Em português, o pl- em início de palavra vira ch- (pluvia>chuva; planus>chão), enquanto que no espanhol vira ll- (lluvia; llano). Não vamos nos estender nos exemplos, que são matéria de lingüística histórica, também estudável nas aulas de latim. Interessa para o professor de língua(s) saber dessas regularidades, inclusive porque é mais fácil estudar as línguas neolatinas e até mesmo o inglês quando se conhece um pouco da origem das palavras.

Falei sobre palavras e não vou me ater ao estudo da sintaxe (frase). Vale mencionar somente que as análises sintáticas feitas a partir do latim são de certa forma relacionáveis ao português. Podemos refletir sobre semelhanças e diferenças entre latim e português no que diz respeito às classes de palavras (substantivo, adjetivo, verbo...), aos diferentes papéis sintáticos dos elementos da oração (sujeito, objeto direto e indireto, complemento, adjunto; ordem das palavras), aos tempos e modos verbais, às marcações de caso, enfim... Por isso e pelo que disse no decorrer do texto, acredito que a disciplina de latim, quando no início do curso, pode servir como uma boa introdução aos estudos da linguagem.

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