Quero desenvolver aqui um ponto que era periférico na postagem "Apanhando do sujeito". Me refiro a um exercício do livro "Gramática Latina", de Napoleão Mendes de Almeida (29ª ed. SP: Editora Saraiva, 2000). O livro pedia para traduzir para o latim a frase "Os desertores não amam a pátria" (o título deste artigo é a tradução esperada pelo livro). Quero dizer que, assim como no quadro de Magritte, "Ceci n'est pas une pipe" (ver nota 1, ao final), ou, isso não é só um exercício de latim.
Nenhum exemplar a que tive acesso, nem site de internet, precisou a data da primeira edição, mas suponho que seja meados da década de 1950. Sendo esta data, quero considerar aqui suas reedições, principalmente as da década de 1960 e 1970 (o livro é reeditado até hoje, considerado ainda o mais completo manual de latim escrito em língua portuguesa - e em latim). Lembrando que para a Análise do Discurso e para semânticas como a do Acontecimento, devemos falar em um passado, um presente e, até, um futuro de um dizer. Ou seja, um dizer é resultado de uma atualização de um passado (ainda que deslocada ou deslocando-se) em seu presente, que não se cessa no seu presente mas instaura um futuro. Estou secundarizando neste texto a ênfase na intencionalidade (ainda que possa haver uma) totalmente consciente do autor, e também não quero e não tenho condições de aprofundar isso.
Neste percurso histórico de um dizer, ele se relaciona com a história externa, ainda que entendamos "externa" somente como "outros enunciados aproximáveis". O exercício de latim em questão ganha um outro caráter após o golpe (para outros, revolução) de 1964. Coloquemos em intertextualidade esse enunciado com outro: "Brasil, ame-o ou deixe-o" era o slogan (grafado ao lado de uma bandeira do Brasil) da máquina militar de propaganda. Este dito tinha por objetivo classificar os revoltosos (em especial os de linhas socialistas, comunistas e anarquistas) como anti-patrióticos. E, de fato, os revoltosos o eram (ou, talvez, a-patriotas), mas as suas razões, obviamente, eram silenciadas pela máquina de propaganda. Podemos marcar algumas dessas razões: o sentido internacionalista dos movimentos comunistas e anarquistas, as ditas atrocidades militares que para os revoltosos eram encobertas pela bandeira nacional.
O discurso da ditadura queria significar os desertores como inimigos da pátria e, por metonímia, inimigos do povo desta pátria, e até mesmo do "Deus" desta (ou daquela, ou da dos militares) pátria. Proponho que este discurso se inscreve em um mesmo campo discursivo do sentido "por trás" (mas não tão por trás assim) daquela frase do manual de latim. Até termos idênticos ou similares se repetem no exercício e no slogan militar: amar, amar; pátria, Brasil; porque não caberia ao exercício do livro falar em Brasil se a língua estudada é anterior ao Brasil inventado a partir de 1500. Se não estamos falando em intenção plenamente consciente de qualquer sujeito, ou de falante, ou de autor, ou do Napoleão Mendes de Almeida, faz muito menos sentido dizerem que estamos acusando o autor por uma previsão de um fato futuro. Estou falando de discurso, de ideologia. Outra coisa: não consegui a primeira nem todas as edições da "Gramática Latina" para saber se o exercício em pauta estava sempre lá ou foi incorporado tardiamente; na 19ª (1983) e na 29ª edição (2000) o exercício estava lá. Isso é algo importante, mas, seja como for, parece adequado dizermos que aquele exercício de latim não fazia parte dos enunciados censuráveis pela ditadura, e talvez por isso mesmo não foi aquele exercício (ou mesmo todo o livro) interditado.
É interessante lembrar o bordão (também interdiscursivo, porque há interdiscursividade na contestação) dos insatisfeitos em resposta ao slogan patriótico dos militares: "O último que sair apague a luz", bordão que queria fazer acreditar que eram muitos os descontentes e / ou que não se fazia questão de estar em uma pátria qualquer, ou, mais especificamente, em uma pátria cujos chefes são os militares pró-capitalismo estadunidense (aqui há a posição de que não eram apenas militares, ou apenas militares patrióticos). Falta só dizer que muitos desses "desertores" não deixaram a pátria por não a amarem, mas porque foram obrigados (direta ou indiretamente) a se exilar, ou a deixar a pátria dos vivos para uma pátria perdida, de um Céu, de um Inferno, de um Hades ou de um nada.
É verdade que a os livros didáticos escolares estão cada vez mais abordando estudos de texto e menos de frases soltas. Diz-se até que é uma tendência: estaríamos nos libertando cada vez mais das tais frases soltas. Mas, é bom lembrar, para alguns propósitos as frases soltas podem ser interessantes, principalmente em discussões decorrentes de ramos da lingüística como os da sintaxe e da semântica, a unidade principal de análise é a frase (Guimarães & Zoppi-Fontana, orgs. "A palavra e a frase"). Devemos nos perguntar sobre a natureza dessas frases. O que fizemos neste artigo pode ser aplicado a livros didáticos em geral, inclusive os de ensino fundamental. Se um exercício pede para encontrar sujeito, predicado, substantivo e adjetivo usando uma frase do tipo "O bom aluno obedece a professora", há um discurso da ordem que engendra uma lição de moral; ísso não é só um exercício de gramática.
Nota (1): "Isto não é um cachimbo", René Magritte.
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