quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

"Ao descer, aperte o botão"

Vi essa frase em um ônibus. Ou melhor, era uma van, um seletivo, micro-ônibus, sei lá. "Como assim, depois de a pessoa descer é que ela deve apertar o botão?" Vamos com calma.

Comecei a falar do contexto externo, sinal de que a área lingüística da pragmática (estudo da relação entre o enunciado e sua situação) faz-se muito necessária para a compreensão dessa frase (e de outras, às vezes mais, às vezes menos). Nesse tipo de ônibus, não costuma haver botão que solicita ao motorista a parada no próximo ponto; normalmente, os passageiros pedem verbalmente, para o motorista ou para o cobrador. Como nesse veículo havia o tal botão, surgiu a necessidade de torná-lo visível, para padronizar a paragem, ou para "enchicar". Como esse tipo de botão existe nos ônibus de grande porte, os leitores nem precisam se questionar qual o botão em questão. A situação nos empurra para um significado do significante "botão": botão de solicitar a parada, e não "botão de camisa", "botão de rosas", "botão de futebol de botão", etc.

O recado estava lá. O espaço era curto, daí não ser possível maiores desenvolvimentos daquele texto. Outros poderão dizer que seria possivel um enunciado sem equívocos que ocupasse o mesmo espaço; algo como "Aperte o botão para descer" (enunciado ainda ambíguo, pois eu poderia gritar para parar e, quando o ônibus o fizesse e eu estivesse prestes a descer, apertaria o botão); ou "Aperte o botão para solicitar a parada". Mas os equívocos estão sempre aí, mesmo em muitos dos enunciados lógica e gramaticalmente perfeitos, mesmo (e, talvez, sobretudo) em textos longos.

É ingênua a idéia, muito presente entre os professores de língua e professores em geral, de que o equívoco é somente um problema de ordem gramatical. Como se os conflitos entre classes, religiões, povos etc. pudessem ser resolvidos com a "boa linguagem". Também dizem isso os pacifistas mais ingênuos. E também professores, jornalistas e etc. que não têm muita informação lingüística para além das regras da gramática tradicional e, para autojustificar sua formação e coagir seus estudantes, leitores e etc. espalham esse tipo de lorota. Um locutor qualquer pode dizer que "houve uma baderna no centro da cidade"; gramaticalmente, tudo certo, mas, se essa "baderna" foi uma manifestação grevista, esse enunciado poderia estar "equivocando" o locutor que não soubesse da origem ideológica de pejorar esses atos.

Voltando a nossa frase. "Ao descer" pode significar um ato concluído, mas também pode sugerir um ato inacabado: um movimento. Então, "ao querer descer..."; "ao movimentar-se para descer, aperte o botão". Quando alguma visita entra em nossa casa e diz "está abafado aqui" (uma variante de um velho exemplo), podemos deduzir que a pessoa quer que abramos a janela, mesmo sem a pessoa, expressa e formalmente, pedir isso. A quem insiste que esse ajuste gramatical em favor da pragmática não procede para o caso da frase do seletivo, devo apelar de vez: ninguém, nem mesmo quem queira usar a lógica gramatical e formal indiscrimiandamente em todas as circunstâncias, desceria do ônibus e depois apertaria o botão, a menos que quisesse troçar do dito. Muitos dos melhores semanticistas formais faziam "concessão" à pragmática se esta pudesse salvar a sentença da falsidade e do ilogismo.

Aquele "troçar" teria graça por causar um combate encarniçado entre o sentido pragmático óbvio e o sentido surpreendente embasado na formalização lógica extrema. Mas, seria muito inusitado, tanto porque esse ato seria difícil ou arriscado ao troçador, quanto porque qualquer falante letrado do português seria capaz de ler a frase e "convertê-la"; ou sequer se aperceber desse "ilogismo", principalmente porque a chave pragmática agiria para recalcar essa outra leitura: o foco recairia sobre "aperte o botão", e "ao descer" ficaria secundarizado; ou somente seria captada a idéia central de cada trecho (descer, aperte, botão), sem a desconfiança paranóica de tudo analisar (como fiz aqui).

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