Análise da frase:
Os meninos apanharam de seus colegas maiores.
Este texto não é, strictu senso, uma análise de humor. Mas pode se torná-lo.
O livro "Gramática Latina", de Napoleão Mendes de Almeida, é um bom manual de latim. E só. Alguns posicionamentos políticos e lingüísticos apresentados no prefácio e nos exercícios são bastante reacionários, para não dizer equivocados. Tudo bem que o prefácio retoma uma luta inglória contra os tecnocratas da educação, que queriam (e conseguiram) excluir o latim do quadro das disciplinas obrigatórias do ensino básico. Mas os argumentos de Almeida na defesa do latim são, principalmente hoje, questionáveis. Quanto aos exercícios, não precisa ser muito esperto para saber quão ideológico é, no contexto da ditadura militar, um enunciado como "Os desertores não amam a pátria" (p.43). Pretendo desenvolver esse ponto em um novo artigo; aqui, o foco é outro.
Poderia ser um mérito do livro o traçar um paralelo entre a gramática latina e a portuguesa. Mas, aqui também falha, por adotar a gramática tradicional, demasiado filosófica e pouco morfossintática. É sempre bom, contudo, ressalvar que era a época em que as ciências lingüísticas tinham ainda menor alcance no Brasil do que em nossos dias. Diz o ditado que o filósofo morre pelo exemplo. Pelo menos os exemplos escolhidos pelo autor, para explicar a gramática portuguesa, servem aos seus propósitos. Mas silenciam outros exemplos possíveis. Vejamos:
"Pois bem, quando o sujeito pratica a ação, isto é, quando age, o verbo está na voz ativa. (...) Um verbo está na voz ativa quando o sujeito pratica a ação do verbo.(...)" (São Paulo: Saraiva, 1983: 59).
O autor traça um paralelo entre voz ativa e voz passiva, dando um exemplo para esta última: "O menino foi castigado pelo professor" (ib.).
E conclui:
"Estamos, dessa forma, vendo um caso em que o sujeito recebe, sofre a ação em vez de praticar. Pois bem, quando o sujeito sofre, recebe a ação do verbo, o verbo está na voz passiva". (ib.)
Para contrariá-lo, uso uma frase do livro "Prática de morfossintaxe", de Inez Sautchuk: "Os meninos apanharam de seus colegas maiores" (algo assim). De pronto, lembro que não é possível verter essa oração para a voz passiva, pois seu objeto é indireto (preposição "de"). Ora, quem realiza e quem recebe a ação do verbo "apanhar"? Semanticamente ou filosoficamente, "os meninos" não realizam nada, não "agem" nada. A regra de Almeida e de tantos livros didáticos serve para a grande maioria dos casos, mas não deve ser tomada universalmente. No exemplo anterior, o sujeito "os meninos" sofre (para falar, como o autor, semanticamente) uma ação e nem por isso a frase acima está na voz passiva.
Poderiam dizer que "apanharam" é uma ação realizada pelo sujeito "os meninos". Mas, semanticamente, não é! O que nos permite associar "os meninos" e "apanharam" não é essa regra, mas sim os elementos sintáticos, taxativos em maior ou menor grau: concordância verbo-nominal, natureza substantiva do núcleo do sujeito, impossibilidade de haver sujeito preposicionado ("DE seus colegas maiores" não poderia ser sujeito), padrão sintático do português (sujeito-verbo-complemento).
Queria trazer um exemplo novo. O caso do modo imperativo é muito interessante, para desmentir a regra de Almeida. Vejamos:
"Amor, venha até aqui!"
O sujeito não é amor, mas o "você" oculto; este se articula com o verbo "venha", e não o "ele/a". Ora, os verbos imperativos não representam, em geral, ações que o sujeito "pratica" ou "age", mas algo que se quer que o sujeito pratique. Os imperativos de manutenção poderiam ser ("Fiquem atentos"), mas mesmo esses destacam uma certa ação porvir, que se quer realizada. Então, de início, o sujeito na voz ativa não é somente quem "pratica a ação" (presente), mas também quem a praticou (passado), quem a praticará (futuro), quem deve praticá-la (imperativo) ou quem talvez a pratique (subjuntivo).
É melhor dizer, então, que o sujeito se articula com o verbo de sua oração, e não que realiza a ação, até porque, além dos aspectos já ditos, existem verbos que dão idéia de estado (como os verbos ser e estar) ou de passividade (como "apanhar de"). O verbo "apanhar", quando transitivo direto, sugere sim atividade, e, por pedir objeto direto e não objeto indireto, pode ser vertido para a voz passiva:
Os meninos apanharam as frutas da árvore.
As frutas da árvore foram apanhadas pelos meninos.
Filosoficamente, o sujeito é o termo principal da oração; a gramática tradicional, por sua natureza filosófico-semântica, privilegiará o sujeito e dirá que este e o predicado são os termos essencias de uma oração. A morfossintaxe dirá que o termo essencial e central de uma oração é tão somente o verbo, posto que, por exemplo, "Choveu!" é uma oração sem sujeito. Para a morfossintaxe, então, a melhor pergunta é: com que o verbo se articula? Daí, aquela perguntinha básica da escola, para descobrir o sujeito: "quem apanhou de seus colegas maiores?": "os meninos". Esse tipo de pergunta não questiona se o verbo é ou não uma ação clara, daí ser interessante. E muitas vezes bastará um olhar sintático para localizar o sujeito (qual sintagma nominal concorda com o verbo); outras vezes, será necessário pedir o auxílio de elementos semânticos ou pragmáticos (as piadas são abundantes de exemplos em que o enunciado sintaticamente ambíguo se enriquece de significados contextuais e cotextuais).
Sautchuk irá considerar falho o método de pergunta e resposta antes exposto ("quem apanhou de seus colegas maiores?" "Os meninos"). Irá propor um outro método, que analisaremos na parte dois desse artigo.
(Leia a continuação desse texto)
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