terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Apanhando do sujeito II

(Leia a primeira parte desse texto).

Análise da frase:
Ricardo viu Lúcio.

Sautchuk (Práticas de Morfossintaxe) diria que orientar o estudante a perguntar quem realiza o verbo, como forma de descobrir o sujeito, pode gerar confusão, pois a pergunta poderia ter como escopo o objeto direto: "quem Ricardo viu?": "Lúcio".

A autora propõe um outro método, baseado na noção de que o sujeito é o único termo da oração que pode ser substituído por um pronome reto não preposicionado (apenas este pode ocupar aquela função): "Ele viu Lúcio". "Ele" substitui o sujeito, no caso, "Ricardo". Sautchuk sugere, então, que o enunciado esteja na forma de pergunta, sendo que, na resposta, seria obrigatória a presença de um pronome pessoal reto, que substituiria o sujeito:

Ricardo viu Lúcio?
Sim, ele viu Lúcio.

Sautchuk silencia um exemplo. Se eu a frase for "Ninguém viu Lúcio", o estudante teria um curto-circuito semântico:

Ninguém viu Lúcio?
Sim, ele viu Lúcio.

O "ele" pressupõe uma presença positiva, ao contrário do "ninguém". Sintaticamente, podemos substituir "ninguém" por "ele"; mas, semanticamente, não. Nesse caso, a perguntinha tradicional parece melhor, por dar ao "quem" as possibilidades semânticas de vazio ou de presença: "quem viu Lúcio?": "ninguém". "Ninguém" seria o sujeito.

Mas, quero fazer uma outra reflexão sobre esse recurso proposto por Sautchuk. A técnica de substituição apresentada por Sautchuk como alternativa também pode causar a mesma dificuldade descrita por ela em relação àquele método tradicional de pergunta. Sua alternativa pressupõe as noções de pronome reto e pronome oblíquo, o que nem sempre é tranqüilo para o estudante.

Ora, trata-se de uma explicação tautológica de algo que não pode ser visto como tautológico, como se dissesse: "O sujeito aceita ser substituído pelo pronome reto, porque o pronome reto somente pode ocupar a função de sujeito". Em suma, é como se dissesse que o sujeito é o sujeito porque é o sujeito. Mas, imaginando que o aprendiz não saiba qual o termo da oração é o sujeito (lembro que é por isso que a explicação se faz necessária), como vai saber onde subsitui-lo pelo pronome reto? No caso da frase analisada aqui, o "ele" pode substituir também o objeto direto:

Ricardo viu ele.

Os defensores da gramática tradicional tentarão refutar essa possibilidade por estar ela gramaticalmente errada. Mas, não estamos, ainda, discutindo se está errado ou não, até porque, por estarmos falando do ensino dessa gramática, imaginamos que os estudantes não devem dominá-la. E mesmo os estudantes ou os falantes em geral que a dominam oralmente também usam pronome reto na posição de objeto direto. Aquele enunicado não estaria tão "errado" assim, se o critério for menos o que a gramática tradicional prescreve invariavelmente e mais o uso dos falantes cultos na modalidade oral, além do fato de essa oração não ser agramatical, uma vez que é cabível aos falantes do português (agramatical seria algo como: "Ricardo viu o ele").

Desenvolvo aqui os quatro recursos para a identificação do sujeito que apenas citei na primeira parte desse estudo.

1) Natureza substantiva: o sujeito é um sintagma nominal cujo núcleo é um substantivo ou um termo que normalmente não é substantivo mas que foi ali substantivado.
2) Concordância verbo-nominal: o sintagma nominal e o núcleo verbal se articulam entre si em uma oração; a concordância verbo-nominal normalmente é a marca explícita dessa articulação.
3) Impossibilidade de haver sujeito preposicionado: mesmo desconhecendo essa formulação, em geral os falantes se apercebem dela; daí não haver tanta confusão entre sujeito e objeto indireto.
4) Padrão sintático do português: a seqüência preferida é sujeito-verbo-complemento.

Na oração estudada, tanto "Ricardo" quanto "Lúcio" têm natureza substantiva. Ambos têm uma morfologia que os permite concordar com o verbo (terceira pessoa do singular). Não há preposição, daí não ser necessário o recurso em 3. Sobra-nos somente a questão do padrão sintático do português: o sujeito costuma vir antes do objeto. Sem esse recurso, ou sem remontarmos à situação, a gramática não pode dizer que "Ricardo viu ele" está "errado". Por esse recurso, desvendamos o 2: é "Ricardo" quem se articula com o verbo.

Quando dizemos "Nós viu a Maria", temos uma aparente falha na regra 2. O que morfologicamente parece concordar com "viu" seria "a Maria", mas algo nos diz que "a Maria" não está nos vendo e sim sendo vista por nós. Primeiro, por causa do padrão sintático do português (sujeito vir antes, em geral). Segundo, porque aceitamos como gramatical a construção "nós viu", de onde se deduz que "a Maria" é um complemento verbal (objeto direto) e não o sujeito. Assim, a concordância não é causa suficiente para haver articulação. "Nós" se articula com "viu", mesmo não havendo concordância verbo-nominal (não é necessária para a articulação). O que quisemos dizer em 2 é que a concordância verbo-nominal é marca recorrente, e não necessária ou suficiente, da articulação verbo-nominal. Em casos como esse fica evidente que a cadeia semântico-textual e o contexto sociolingüístico podem contribuir na análise, para além dos quatro elementos citados.

Minha proposta é que esses quatro elementos antes descritos sejam trabalhados no ensino gramatical, entendido como um ensino morfológico, sintagmático e semântico (e, aqui, coloco as teorias do texto e da interpretação). É preciso problematizar esses elementos e pesá-los a cada caso estudado. Complementarmente, os dois métodos de perguntas e respostas (tradicional e de Sautchuk) podem ser trabalhados. Isso requer do professor conhecimentos morfossintáticos, nem sempre contemplados na formação acadêmica. Requer também pensar o contexto lingüístico e situacional em que o a oração aparece (daí, preferir trabalhar com textos, nem tanto com frases isoladas).


PÓS-ESCRITO:

Creio que nos artigos "Apanhando do sujeito" (I e II) há mais falhas do que as que de hábito cometo. Apanho de muitos temas, não só do sujeito (risos). Arrependo-me de muita coisa do que escrevo (inclusive isso que fiz aqui, de não começar período com pronome átono). Me arrependo sim. O problema naquele artigo, e na sua continuação, diz mais respeito à falta de profundidade nas discussões gramaticais. Embora não sendo gerativista, tendo a concordar com a idéia de que não é o verbo o centro da frase, mas uma parte do verbo, a saber, a flexão, ou até o seu caráter [+finito] ou [-finito], coisas que em geral estão incluídas no verbo mas que em algumas línguas são elementos isolados, o que nos sugere relativa autonomia em relação ao verbo (se você se cansou desse assunto, mude para o parágrafo abaixo). Outra coisa: não é toda frase que deve ter verbo, mas podemos imaginar haver um verbo atuando mesmo quando não realizado morfologicamente; exemplo: "Minha casa, tão verde". Tudo bem que isso é mais emotivo ou apelativo que "Minha casa é verde", mas o que quero discutir é que verbos podem não estar expressos, pelo menos verbos como "ser", frágil ao ponto de algumas línguas não o apresentar nessas circunstâncias (como o russo, que traz entre o sujeito e seu predicativo um mero hífen; eu diria que o "ser" em português é praticamente um mero hífen). Não vou entrar aqui na discussão se toda frase deve ter sujeito; apenas faço uma ressalva que eu não tinha feito no artigo anterior: para a gramática gerativa, toda oração tem sujeito (sujeito da oração, não necessariamente sujeito que age o verbo), ou expresso, ou oculto, ou realizado / suposto em um expletivo ("it rains"; "it" é expletivo realizado; em português, o expletivo é nulo: "expl.choveu"). Para essas questões, ver Miotto et alii, "Novo manual de sintaxe" (Florianópolis: Ed.Insular, 2004).

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