domingo, 17 de junho de 2007

Aborto clandestino, com a benção do papa













Angeli. FSP, s/d



Esta charge foi descoberta pelo blog ForSign, do meu amigo Denis. Achei-a interessante e vou postá-la aqui. Não quero fazer um comentário exaustivo (na verdade, nunca consigo).

O título, "Aborto clandestino", é a chave de entrada para compreendermos a cena: com essa informação, excluímos se tratar, por exemplo, de uma cirurgia de apêndice num hospital legalizado. Aliás, "clandestino" é algo que, por alguma razão, não pode se dar a conhecer; partimos do pressuposto que algo assim é "ilegal". A cena mostra sujeira e desorganização; as manchas de sangue na roupa do "médico" aproxima-o de um "açogueiro" (inclusive, costuma-se usar desta palavra para se referir a maus profissionais da área da saúde). Imaginamos que é este quem fala (também pelo aspecto gráfico: ele está de frente), e não a "enfermeira", por supormos que aquela fala deva ser ou de um proprietário (é mais comum que as clínicas sejam de médicos do que de enfermeiras) ou de quem está um nível acima na hierarquia (e teria mais direito de dizê-la).

Se há o imperativo "relaxe" (imperativo mesmo, e talvez por isso sem efeito), pressupõe-se que a paciente (agora sabemos ser uma paciente) não esteja, nem poderia estar, relaxada. "Relaxe" e "super equipada e esterlizada" são ironias; não talvez do personagem (que pode estar acreditando nisso), mas uma marca do autor: o autor nos dá a cena para que a fala do "médico" seja lida ao contrário ("fique tensa", clínica mal-equipada e imunda). O último período traz justificações a favor do enunciado anterior, "Você está em boas mãos". É claro que essa explicação deve ser engraçada; a charge pede um arremate assim.

A graça é permitida pela dupla interpretação de "benção", que entram em combate na charge: 1) no sentido religioso, de interceder pela graça de alguma divinidade ou coisa do tipo; 2) no sentido mais laico, de "aval" (é claro que o sentido laico ainda carrega a memória do sentido religioso). A charge se relaciona com a visita do papa Bento 16 (ou, papa Ratzinger) ao Brasil, em 2007. A charge argumenta na direção de outros textos que definem Ratzinger como um papa reacionário; daí, um papa contra o aborto. Mas, como poderia então o tal papa abençoar a clínica clanestina de aborto? Nós, leitores daquela charge, saímos desesperadamente em busca de outros sentidos, pois sabemos que não se poderia esperar uma heresia de um papa (ainda mais deste papa). A graça da charge está na solução deste (depois aparente) paradoxo.

É tarefa do papa abençoar, no sentido 1. Ao se pronunciar contra o aborto, em visita ao Brasil (coisa que os jornais noticiaram, e a charge em geral gosta deste tipo de intertexto, a saber, intertexto com outras notícias; o "recentemente" tem a ver com isso, é um indicativo para buscarmos a intertextualidade), o papa deu sua benção (no sentido 2; deu seu aval) para que as clínicas clandestinas continuem "operando". E, ainda, numa leitura complementar, o papa dá o aval não só para as clínicas clandestinas de aborto como também para que o próprio aborto continue clandestino, como se a charge nos dissesse: "o papa não pode impedir o aborto, que é algo corriqueiro embora clandestino, ilegal juridicamente e mal-visto pela Igreja". Essa posição, nesta leitura mais sutil (e, poderão dizer, até forçada), opõe-se à Igreja (e até ao Estado) ao relativizar seu poder.

A conclusão da charge é um implícito (eu diria que o autor concorda com essa conclusão, neste caso; mas determinar isso é algo complicado e fica para uma outra hora): aborto ruim é o aborto clandestino; aborto arriscado é o aborto clandestino; e, seja mais ou menos arriscado, seja mais ou menos clandestino, os abortos vão continuar existindo por aí, queira ou não o papa. A linha argumentativa da charge indica uma posição da charge (e talvez do autor) favorável à legalização do aborto.

Não vou aprofundar o debate sobre o aborto. Os meus leitores mais igrejeiros podem estar arrepiados, pensando que essa charge nem deve estar aqui. E é verdade também que algumas pessoas de dentro da Igreja e das igrejas não amaldiçoam o aborto, e alguns sejam até militantes da descriminalização; ou até já o praticaram. Agora, não há problema de se colocar o debate e fazê-lo (como esta charge o faz) em termos mais laicos, mais seculares.

A charge não nos indica; mas aquela clínica retratada poderia corresponder a uma clínica para pobres. Assim, "aborto clandestino" pode estar significando também "aborto perigoso": a prática do aborto seria clandestina para todas as clínicas; mas, dentre as clandestinas, existiriam aquelas duplamente clandestinas, porque não respeitariam procedimentos médicos gerais, como o da esterilização. Porque, embora também clandestinas, existem clínicas caras, que realizam aborto com higiene e baixo risco à paciente. E, dependendo do nível de pobreza da paciente, sequer há a opção de uma clínica precária (usa-se de pontapés no útero, auto-perfuração, super-ingestão de álcool, etc.).

Existem setores da esquerda brasileira favoráveis à legalização do aborto que usam isso como argumento (cito, por exemplo, o PSOL, que em seu recente 1º Congresso - junho/2007 - deliberou favoravelmente à legalização); seria preciso legalizar o aborto para que o Estado (investindo nisso) reduza as mortes, principalmente as mortes entre as mulheres trabalhadoras pobres. Os defensores desta posição poderão usar esta charge em seus materiais, em suas reuniões etc. E poderão, eventualmente, interpretar que a clínica retratada pela charge é não só clandestina (como todas no Brasil, pelo menos em tese) mas também uma clínica clandestina -clandestina, uma clínica clandestina para mulheres pobres.

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