sábado, 24 de fevereiro de 2007

Lula e os doadores de campanha














Glauco. FSP, 01/12/2006.


Maria Rita Kehl afirma que a "queixa estéril" é uma das formas do ressentimento, usada pela massa atônita que não vislumbra uma forma de ruptura (leia). A charge política é um lugar por excelência da queixa: por uma lado, destrona o mesmo; por outro, essa "chiadeira" é pura amargura, puro ressentimento, não revolta. É bom lembrar que, embora seja um gênero de maior "liberdade", ainda está em geral inscrito em grandes veículos de comunicação a serviço da ordem. Por essas e outras muitos se perguntariam se a charge pode ou deve ser mais que ressentimento, sublimado em formas e cores.

Esta charge de Glauco parece aprofundar a crítica. A classe política contitui o quadro preferido de personae dramatis das charges. A charge em questão, ao invés de repetir a tópica das charges em geral ("político é corrupto" e afins), acaba aprofundando o problema: político é corrupto nesse modelo de sociedade (capitalismo), em que o político "aceita" "doações" dos detentores do capital, e com isso fica com o "rabo preso", ou melhor, tem que "carregar nas costas" esses doadores. Nessa minha leitura, a charge pressuporia, intertextualmente, o dito marxiano e marxista: o estado na sociedade capitalista é um instrumento de opressão a serviço da classe dominante contra a classe trabalhadora. O "depois passa" sugere a conformação dos políticos, mesmo daqueles cuja origem não é a da classe capitalista; a expressão é enunciada pelo representante maior do estado: o presidente (Lula).

A relação de intertextualidade das charges se dá não só com outros textos do jornal ou do meio jornalístico, mas também em relação a datas memoráveis (por exemplo, no dia do natal) ou a provérbios e expressões populares. No nosso caso, a expressão é "carregar nas costas", que perde o tom mais abstrato que tem na linguagem comum e ganha aqui concretude. Essa concretude se dá porque a charge precisa "encenar", teatralizar. Daí, o gênero chárgico recorrer sempre a este recurso: materializar um sentido concreto em cena (causando surpresa), que guarde alguma ambigüidade com o sentido abstrato recorrente (já sabido).

O interlocutor de "Lula" é um anônimo (o importante aqui é o presidente), tanto que sua face nem figura; pelas vestes, podemos classificá-lo como um político, ou um acessor, que é novato no meio ou que não está acostumado com as retribuições aos aduladores. A cenografia é a de um "conselho", que reitera o discurso do "se todos tiram proveito...". A proporção (agigantada) e a posição (acima) dos doadores nos sugerem quem de fato teria o poder do estado na mão, e quem é o mero executor (executivo) desse poder (quem o "carrega"), retomando o dito marxista de que o estado capitalista tende a se pôr majoritariamente a serviço da classe burguesa, ainda quando não são sujeitos de origem burguesa que o controlam.

Poderíamos também analisar esta charge sob o ponto de vista do momento político em questão: pós-eleitoral, de transição do primeiro para o segundo governo de Lula (fim de 2006). Acreditamos que a análise da charge pode comportar um recorte mais conjuntural ou mais estrutural; nesta análise, preferimos secundarizar o primeiro em favor do segundo.

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