quinta-feira, 28 de junho de 2007

Ouro de tolo (Raul Seixas)



Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês

Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73

Eu devia estar alegre e satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa

Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado

Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos

Ah! Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro, jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua cabeça animal

E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social

Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar

Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador

Vou separar esta canção em dois enfoques do eu-lírico, que não coincidem com as duas partes em que a canção é musicalmente dividida. Não vou considerar esses dois enfoques como estanques; uma mesma estrofe pode conter ambos. São do que chamo "primeiro enfoque" os versos em que o eu-lírico demonstra sua insatisfação com um padrão de vida que, implicitamos, seja pretendido pela maioria das pessoas: por isso, o eu-lírico "deveria estar contente", junto com os outros (ou, os sonhos dos outros), mas não está. O segundo enfoque é trazido pelos versos (principalmente ao final de cada parte musical) que apresentam de forma mais elabora as razões de o eu-lírico não estar contente. O que o autorizaria a dizer é o fato de ter experimentado aqueles ideais de vida e não tê-los aprovado; a canção pode, assim, estar marcando a passagem do eu-lírico de um estado a outro.

A posição majoritária trazida pela canção convoca, em um domínio discursivo, vários discursos e instituições interligados, cujo denominador comum é defender uma vida regrada e planejada: do mercado de trabalho (ter um bom e estável emprego é algo valorizado no mundo competitivo), da religião (a prosperidade é alcançada com o apoio de Deus, o descanso do trabalho é sagrado e deve ser aproveitado sem excessos), da família (é bom ter uma família estável e poder dedicar-se a ela, é bom ter uma prole, ter herdeiros), da propriedade (ter um carro, ter uma casa) etc. Em suma, tudo isso pode ser identificado como ideais de classe média; uma vida mediana é o que estaria reservado a uma classe mediana.

É contra esses ideais e, poderíamos dizer também, contra as instituições que os veiculam que o eu-lírico se contrapõe. Para isso, o eu-lírico não só arregimenta a seu favor a memória discursiva do hedonismo (que trataremos a seguir), como pode se associar (na efemeridade de um interdiscurso) ao discurso socialista ou anarquista que se contrapõe àquelas instituições e àquelas ideologias.

Poderíamos encontrar naquela posição majoritária uma memória discursiva presente há muito pela via da tradição estóica, considerada seja na sua versão filosófica seja na vulgarizada. A figura chave para o estoicismo é a "Roda da Fortuna": o sujeito racional e regrado está mais ao centro da Roda e livre dos altos e baixos que o Destino (Fortuna) impõe à borda. O oposto do estoicismo seria o hedonismo, que pregaria a primazia dos prazeres e dos sentidos; é com esta posição que o eu-lírico fecha. A patrística buscou associar a tradição judaico-cristã à tradição filosófica, sobretudo estóica; daí, na canção, o discurso religioso vir a somar-se ao domínio ou à formação discursiva favorável pró-vida regrada pequeno-burguesa (sem "pecados" e com poupança). Por isso, é importante falarmos de memória discursiva, não com anseios empíricos e exaustivos, mas para indicar que os discursos possuem um passado e se organizam e se desorganizam em posições ou em formações discursivas, nunca completamente acabadas.

Observe estes versos:

Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado

Engraçado que a canção diz "aí parado" e não o mais corriqueiro "aqui parado". E isso não é um problema de incoerência, muito pelo contrário; a canção está falando de um eu-lírico que não "pára quieto", que toma por princípio nunca estar em um "aqui" mas sempre se deslocando de um "aí" a outro. Podem ser, então, inúmeros "aís", mas pode ser um só (esta parece ser a melhor leitura): o "aí" marca uma diferenciação entre as duas posições discursivas trabalhadas pela canção; o "aí" é o lugar, agora distante, que o eu-lírico atribui aos acomodados, lugar em que ele não só deseja não mais estar, como já não está mais nele.

Estamos nos domínios de um gênero musical que crivou um dos mais repetidos lemas pró-hedonistas e anti-estoicistas: "sexo, drogas e rock'n'roll". E o eu-lírico (e mesmo, neste caso, o autor da canção) nos reporta este "ethos" de rebeldia, se não através de guitarras barulhentas, através de um outro recurso: falo do recurso ritmico das frases atravessadas, que parecem grandes demais para caberem na frase musical. Isso é condizente com o conteúdo da canção, que fala de alguém que não se adapta a uma vida "quadrada"; alguém que, para atestar que quer se colocar fora dos limites das "cercas e bandeiradas que separam quintais", precisa cantar apressadamente e extrapolando as cercas e bandeiradas que demarcam as frases musicais.

Já que estamos falando da última estrofe, o que dizermos dos dois últimos versos desta? Enigmáticos? Sim, e a linguagem cifrada também pode ser um atestado da não-adaptação do eu-lírico. A canção lança mão de uma metáfora, de grande poder imagético, como síntese definidora daquele eu-lírico. "Sonhar" muitas vezes é tido como "visualizar algo". Pois bem, o que o eu-lírico visualiza não são coisas comportadas, como o faz a maioria das pessoas; o que se "assenta" sobre o seu olhar é algo da ordem do impossível: um disco voador (repete, em certa medida, a caracterização do artista ou do poeta como um visionário ou como um portador de um olhar incomum). Ou melhor, algo ainda mais impossível que o impossível: "a sombra sonora de um disco voador". Essa imagem sinestésica e um tanto quanto inexplicável ganha força exatamente por ser sinestésica e inexplicável: a canção traz uma hipérbole para atestar o quanto o eu-lírico não compartilha os mesmos sentidos das pessoas comuns.

"A sombra sonora de um disco voador" indica a idiossincrasia, a grandeza e a loucura dos projetos do eu-lírico. "A sombra sonora de um disco voador" é principalmente a representação do "incômodo", que o eu-lírico reconhece como destoante do comportamento comum (considera-se um "sujeito chato") e que não pode ser explicado; neste sentido, sua posição hedonista pode não ser tão "feliz" assim.

Um comentário:

  1. Olá, Paulo! Estava relendo esta análise para fazer o trabalho do Sírio. Muito boa! Fiquei impressionado (agora que sei um pouco mais do Menguenô) e entendi muito mais! Bela análise!!! Abraços, jeff - que pena vc nao conseguir manter o blog atualizado

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